sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A Cor da Esperança

É mais uma noite como todas as outras. Não há nada de diferente nesta noite que faça dizer que é especial ou que é diferente. Tudo está igual. Os ponteiros do relógio de pulso continuam com o seu tic tac irritante, o vento continua a usar as folhas como se de um instrumento musical se tratassem, a lua continua com o seu reflexo espelhado no lago e o rapaz está lá sentado na relva a olhar para ela. O habitual, portanto. No entanto, este sítio tem um detalhe interessante. A Lua está no céu. Sempre. Todas as noites. É por isso que lhe chamam o Monte da Lua e à aldeia que lá existe chamam Aldeia da Lua. Cientificamente não há explicação lógica que permita entender porque é que nesta zona do planeta não há Lua Nova. É um ambiente que parece que parou no tempo. A aldeia é composta por casas de madeira paralelamente organizadas e rodeada por uma muralha, também de madeira, rústica. Lá as pessoas vivem num ambiente quase que anárquico. Cada um sabe de si e só em ultimo caso é que se reúnem para discutir algo. Normalmente todas as discussões são centradas no dinheiro dos turistas que por lá passam.
Nas imediações desta aldeia existem várias casas, também de madeira e também paralelamente organizadas. Algumas histórias dizem que são pessoas que foram expulsas da aldeia mas, no entanto, estão demasiado apegadas para partir para outros lugares e decidiram assentar por ali, outras dizem que apenas vivem ali porque a aldeia não tem capacidade para mais pessoas. É numa dessas casas fora da aldeia que mora um rapaz franzino. O tal que todas as noites está sentado na relva perto do lago. Os seus olhos não têm cor, são brancos como a mais límpida nuvem que invade um céu de Verão. São vazios e fantasmagóricos, é como as pessoas da aldeia os descrevem. Sem ele entender bem porquê, as pessoas foram ganhando medo dele e foram surgindo histórias, lendas e mitos sobre ele. Alguns contam que ele é um fantasma que aparece no lago todas as noites, outros dizem que é um lobisomem. Estão todos errados. É apenas um rapaz. Um rapaz de 14 anos, franzino, de cabelo azul escuro, com coração, estômago, fígado e pulmões como todo e qualquer outro ser humano.
O padrão do rapaz era simples: quando a Lua aparecia numa ponta do lago ele ia para lá. Quando ela chegava à outra margem ele ia-se embora. A única excepção era em Setembro, pois durante esse mês a quantidade de lobos que apareciam na floresta circundante aumentava e quando começava a ouvir uivos ao longe sabia que era como se de uma sirene de alarme se tratasse, a avisa-lo que tinha de se retirar. Não eram só as suas idas ao lago que eram uma rotina inquebrável que se deixava levar pela corrente do tempo. Toda a sua vida o era. De manhã tinha aulas, durante a tarde estudava e ajudava os pais nas tarefas domésticas e ao final do dia preparava-se para ir para o lago. Era assim que ele se deixava à deriva e não parecia feliz, mas também não parecia incomodado. Lembra um naufrago que fugiu da sua ilha abandonada e anda à deriva pelo mar, sem saber para onde vai, sem saber se tem algum sítio para onde ir.

Setembro era o seu mês favorito, mas também o mais perigoso. Ano após ano a quantidade de ataques de lobos aumentava, mas não era isso que o demovia. Todo aquele ambiente de folhas a alternar a sua coloração entre um verde puro e um castanho morto fascinava-o. Ele sentia que ali estava perante uma pintura de um pintor de renome, uma obra prima e isso merecia respeito. O que ele não sabia é que aquela noite ia ser diferente de todas as outras. Ia ser especial. Naquela noite, o mundo mudava.
Sentado na cama, olhou pela janela e começou a ver as primeiras estrelas a aparecer no céu. Era a sua deixa. Pegou nas suas coisas e saltou pela janela. Saía sempre por ali, independentemente para onde fosse. A sua relação com os seus pais não era a melhor. Chegado ao lago sentou-se na relva a olhar para a água. De vez em quando pegava numa pedra e atirava-a para a água. De resto alternava entre olhar para o céu e para o lago, perdido no seu próprio mundo de pensamentos. Tudo corria como costume, quando o agradável silêncio foi invadido por uma voz feminina.
- Hope? - perguntou timidamente.
- Olá. - respondeu de forma despreocupada, sem sequer se virar para ver quem era.
- Olá, eu sou a...
- Mia, 14 anos, sexo feminino, sentas-te na 3ª fila, na 4ª mesa a contar da direita, a tua melhor amiga chama-se Ana, o teu pai está ausente no estrangeiro porque é um homem de negócios e vives com a tua mãe e irmã mais nova. Moras na casa cuja porta tem por cima um sol desenhado. És uma rapariga normal, ou pelo menos esforças-te por o ser, as tuas notas não são muito elevadas, nem muito baixas, o que te torna intelectualmente atraente porque não faz de ti arrogante, nem faz de ti ignorante. - respondeu rapidamente, interrompendo-a.
- A tua ideia era assustar-me?
- Talvez.
- Se quiseres eu vou-me embora.
- É me indiferente.
Pouco a pouco ela foi-se aproximando, como se do processo de domesticação de um animal selvagem se tratasse. Passo a passo ia-se aproximando, até ao momento em que se sentou ao lado dele.
- Porque é que vens aqui todas as noites?
- Porque gosto.
A rapariga suspirou. Ao que parece o objectivo com que ali foi falhou redondamente.
- E tu, porque vieste aqui? - perguntou Hope baixinho, quebrando o silêncio.
- Por ti.
- És bonita, mas não estou interessado em ti, desculpa.
- Idiota! - gritou ela enquanto o seu rosto corava e a sua mão ficava estampada no rosto de Hope.
- Desculpa, achei que se brincasse te sentirias mais à vontade.
- Não, desculpa eu! - repetiu ela várias vezes em pânico, visivelmente atrapalhada pela situação - não te quis magoar, foi um reflexo!
O silêncio voltou a instalar-se. Desta vez ficaram os dois calados, nenhum tomou a iniciativa nem parecia que algum iria toma-la. A Lua estava perto de chegar ao outro lado do lago e ao longe ouviu-se um uivo. Hope levantou-se e estendeu a mão a Mia para ajuda-la a levantar-se.
- Está na hora de irmos embora.
- Porquê?
- Não ouviste o uivo? Se quiseres servir de jantar para um animal selvagem é um problema teu.
Partiram então num passo acelerado. Já algo longe do lago, os seus caminhos separavam-se. Mia seguia para a sua casa dentro da muralha enquanto Hope tinha a sua casa no sentido oposto. Despediram-se com um vazio adeus, até que já depois de algo afastados Mia perguntou se poderia voltar amanhã. Hope continuou a andar e murmurou que lhe seria indiferente, sem saber se ela teria ouvido ou não mas com a certeza que isso também lhe seria indiferente.
Apesar de sair pela janela, na altura de entrar em casa fazia-o pela porta.
- Por onde andaste?! A tua sorte é que o teu pai ainda não chegou, se não estavas bem tramado! - gritou a mãe.
Ele não respondeu. Andou sempre em frente até ao quarto, ignorando os gritos da mãe e andando sem fazer um único barulho, como se de um fantasma se tratasse. Entrou no quarto para cair na cama. Ao contrário das outras noites não estava a conseguir dormir. Havia algo que o preocupava: a presença daquela rapariga. Na cabeça dele ecoava vinte vezes por minuto "porquê?". Passou a noite toda em branco, com perguntas às quais não encontrava resposta. Sempre foi assim, quando algo o incomodava não conseguia dormir.
Na escola Mia não lhe falou, nem sequer trocaram um único olhar. Ao contrário do que se passou na escola, à noite, no lago, ela voltou a aparecer.
- Olá.
- Porque é que vieste?
- Porque é um sítio giro.
- Está bem.
Deitou-se na relva e fechou os olhos. Ela imitou-o. Ali, parecia que não haviam problemas. Flutuavam na sua jangada, sem que ninguém a invadisse, guiados por um rio de vento que os levava para onde os seus sonhos seriam realizados. Acabaram por não resistir e adormeceram os dois ali mesmo, hipnotizados pela suave brisa que se fazia sentir.
- Hope, acorda!
Hope levantou-se esfregando os olhos e olhando para o lago. O reflexo da Lua não estava lá. Olhou para o céu para procurar pela Lua e ela já estava bastante adiantada. Pela primeira vez em vários anos recorreu ao relógio que trazia no pulso e os ponteiros deste mostravam que eram quase quatro horas da madrugada, enquanto o seu tic tac entrava na cabeça de Hope como uma riso sádico de alguém que se estava a divertir com o seu pânico interior.
- Temos de ir embora.
- Mas não é perigoso?!
- Não serve de nada entrares em pânico, Mia.
Quando se viraram para ir embora Hope parou. Estava petrificado. Não se lembrava de sentir tanto medo antes na vida. À sua frente estava uma imponente raposa. As suas cores laranjas vibravam na noite e até a natureza deixava em sentido.
- Hope, que se passa?!
Ele foi incapaz de responder. Ele queria, mas não era mais ele que controlava os seus músculos. Neste momento estava com todos os sentimentos à flor da pele, como nunca antes lhe tinha acontecido. Lentamente a raposa foi se aproximando dele e à medida que tal acontecia ele sentia que o seu coração ia pegar fogo, ia explodir.
- Pára, por favor, pára! - gritava ele dentro de si, implorando como um cobarde.
Começou a perder as forças gradualmente, primeiro nos pés, ficando com dificuldades em manter-se de pés, depois nas pernas, caindo de joelhos no chão e acabou mesmo por sentir que a sua vida estava a ser tirada de dentro de si.
- Eu vou buscar ajuda Hope! Eu volto, eu prometo!
Foi a ultima coisa que ouviu antes de perder todas as suas forças e ficar inconsciente.
Quando acordou ainda era de noite. Presumiu que não tivesse ficado ali muito tempo e no seu pensamento apenas soava um alarme que lhe dizia para ir embora.
- Onde vais? - disse uma voz atrás dele.
Virou-se lentamente para ver quem era. Era a raposa. Mas desta vez não ficou petrificado de medo. O medo que sentiu antes, foi o medo de morrer. De sofrer. Sabendo que tinha ficado inconsciente perante um animal selvagem e ainda estava vivo, era sinal de que o animal, aparentemente, não teria interesse em fazer-lhe mal. Aproximou-se e sentou-se em frente a ele e olhou-a fixamente.
- Não sou nenhum lobo, rapaz. Podes ficar tranquilo.
- Está bem.
E ficaram a fixar-se incessantemente. Sem darem por isso, a noite foi conquistada por um sol resplandecente, ditando a manhã.
- Hope!! Estás bem? - gritou Mia, visivelmente preocupada.
Vinha acompanhada de mais umas quantas pessoas da aldeia.
- Fiquei tão preocupada quando desmaiaste de repente! - disse ela enquanto o abraçava e lhe molhava o ombro com lágrimas - o que se passou?
- Não viste?
- O quê?
- A raposa!
- Qual raposa?
- Esta aqui!
- Idiota! - gritou ela enquanto lhe dava uma estalada - eu preocupada contigo e tu com brincadeiras infantis! És um idiota!
E foi se embora. A raposa ria-se perdidamente.
- Não tem piada.
- Tem sim. Já reparaste? Tu, um rapaz tão frio e calculista, estás com todos os teus sentimentos à flor da pele. Estás confuso, estás perdido. Nota-se no teu olhar. Os teus olhos deixaram de ser brancos para se tornarem laranjas. Já não pareces um fantasma, agora pareces uma pessoa.
Levantou-se e foi-se olhar no lago. Realmente, os seus olhos não estavam mais brancos. Estavam cor de laranja.
- Quem és tu?
- Eu sou uma raposa.
- Se és uma raposa, porque é que eles não te conseguem ver?
- Porque eu não sou uma raposa.
- Chega de brincadeiras!
- Ainda não percebeste?
- Mas há algo para perceber?
- Eu sou a materialização de tudo o que oprimiste durante todos estes anos. Sempre achaste que se oprimisses tudo o que sentias, tudo o que pensavas, que serias feliz. Estás enganado. Reparaste como a cor dos teus olhos mudou? Mudou porque agora já consegues ver o mundo. Já sabes quem és.
- É verdade...
Ficou parado a olhar para as suas mãos. Subitamente lembrava-se de todas as memórias de quando era criança, de tudo o que pensou e idealizou em frente daquele lago.
- Agora já podes partir.
- Partir?
- Sim. Lembra-te que eu sou tudo o que oprimiste. O que tu sabes, eu também sei. Portanto, ambos sabemos que o teu lugar não é aqui. Tu sabes que podes mudar o mundo. Acredita em ti! Se tu acreditares, é tudo o que é preciso!
Ele não precisava de ouvir mais nada. Não precisava mais de falar consigo próprio. Levantou-se e correu para casa, como nunca antes tinha corrido. Meteu tudo o que era seu e tinha ao seu alcance na mala e saiu a correr. Para onde, ele não sabia. Mas sabia que iria para algum lado onde não seria mais uma carta no baralho, seria sim A carta do baralho.

- Passaram-se 20 anos desde a última vez que aqui estivemos, não foi?
- Sim. Pode-se dizer que o mundo mudou há vinte anos aqui.
Hope tem agora 34 anos. O fluxo de tempo, ou o destino, levaram-no a conhecer um velho inglês que gostou da sua ideologia. No seu leito de morte, esse velho inglês, uma das pessoas mais respeitadas no seu país, deixou uma carta a pessoas influentes que conhecia para que ouvissem Hope e pedindo para ser sepultado junto ao lago da Aldeia da Lua. No momento em que as palavras de Hope envolveram os ouvidos das potências mundiais todos começaram a tocar em sintonia. As guerras cessaram, os fundos despendidos nelas foram direccionadas para o combate da fome, pobreza e crime. O mundo unificou-se num único objectivo. Os países mantinham a sua identidade, os seus nomes, mas isso não importava mais. Importava sim, a paz. Importava que viviam todos no planeta Terra e era assim que quase todas as pessoas respondiam quando lhes era perguntada a sua naturalidade: Planeta Terra.
Quanto à raposa... ficou branca. Branca como a neve. Aquele laranja flamejante voltou a casa, dando lugar a um branco puro e genuíno, como o da neve.

Fim.

Espero que tenham gostado,
Crow.

PS: Peço desculpa caso o texto tenha alguns erros. Quando escrevo, deixo-me levar pela história e como escrevo rápido no computador acabo por cometer alguns erros.

O começo. (ou o regresso?)

Bom dia/tarde/noite. Adaptem a saudação que vos for mais conveniente dependendo do vosso fuso horário e altura do dia em que estão a ler isto.
Já lá vão uns bons tempos desde a ultima vez que mexi num blog. A ultima vez que o fiz foi quando tive um blog onde deixava poesia escrita por mim. Com o passar do tempo deixei de o fazer. Porquê não sei, simplesmente não me apetecia mais. Agora, está na altura de regressar mas de forma diferente. O antigo blog dedicava-se exclusivamente a poesia mas este será diferente: tudo o que eu escrever irá ser aqui posto. Desde o mais complexo texto capaz de atingir as 700 páginas de word ao mais pequeno conto. Quanto à periodicidade de tal coisa... não quero prometer nada a ninguém. Pelo menos semanalmente deve haver algo, até porque eu estou constantemente a escrever. É mais forte que eu, basta-me estar parado para começar a escrever na minha cabeça.

Ainda hoje, mais tardar amanhã, devo baptizar o blog com uma história que me surgiu na cabeça. Só me falta escreve-la.

Até mais ver,
Crow.

PS: Um grande obrigado a toda a gente que me tem ajudado até hoje, não quero individualizar os elogios porque todos me ajudaram de grande forma.