sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Requiem - Quarto Turno

I
II
III

IV

- Snow... é o meu pai... - disse ele, apontando para o, aparentemente, treinador da equipa adversária.
Ele tremia por todos os lados. Parecia que, debaixo dos seus pés, estava a ocorrer um sismo de classificação onze na escala de Mercalli. Sendo incapaz de aguentar o desabamento do mundo de baixo de si foi cedendo gradualmente. Primeiro cederam as pernas, caindo de joelhos sobre o que restava de chão de baixo dele, seguiu-se o tronco, ficando completamente imóvel no chão e por fim perdeu a capacidade de se manter neste mundo. O único sinal de que ainda existia uma réstia de vida naquele corpo era a respiração tensa. Tudo o que resto dissipou-se.

Quando acordei estava de pé em cima de um vasto oceano. Pelo menos assumi que era um oceano, visto que a água era salgada e não havia mais nada a meu redor. Talvez fosse o Atlântico ou o Pacífico, pensei. Mas isso não fazia o mínimo sentido, desde quando é que eu conseguiria andar sobre o Atlântico ou sobre o Pacífico? Continuava a olhar à minha volta à procura de um sinal de terra, de um simples sinal de para onde devia ir, quando me apercebi da presença de um rapaz. Estava sentado numa cadeira. Fisicamente era quase igual a mim. A única coisa que nos distinguia é que ele era totalmente branco, tendo a roupa alguns detalhes pretos e os seus olhos eram negros. Passava a ideia que toda aquela escuridão estava ali retida e a qualquer momento podia libertar-se e consumir tudo o que a rodeava. Eu, o oceano, o horizonte e aquele rapaz igual a mim. A única certeza que tenho é que ele não estava ali antes. Tentei manter a calma, mas naquele momento nada fazia sentido para mim. Eu estava de pé em cima de um oceano, à minha frente estava um rapaz igual a mim, pintado a preto e branco, que se sentava numa cadeira que estava, assim como eu, em cima do oceano. De seguida, o oceano começou a ondular com alguma violência.
- Quem és tu? Onde estamos? Que sítio é este? Ainda há pouco estava rodeado de milhares de pessoas, num estádio de futebol e agora estou aqui. O que é isto? - questionei violentamente, depois de uns largos minutos de estudo mútuo.
- Tanta hostilidade, River. Sossega. Estás em casa. - respondeu-me com um sorriso sarcástico no rosto, apoiando a cabeça no punho.
- Casa? Em casa? Tu estás doido. Só pode. A minha casa tem um tecto, uma porta. Isto é nada.
- Exacto. Isto que chamas de nada, é a tua casa. É onde tu moras. Se preferires, é onde existes.
- Onde eu existo?
- Mas tenho de explicar tudo? Isto és tu. Olha para baixo. Preocupaste-te tanto em olhar à tua volta e para cima que te esqueceste do que estava em baixo. O que está em baixo também é importante rapaz. Afinal, tu não és um pássaro nem um super-herói, portanto, não consegues voar. Se aqui estás é porque algo te elevou até aqui.
Quando olhei para baixo vi um monte de portas. Recordei-me imediatamente de onde estava. Era o meu interior. Portanto, eu estava dentro de mim próprio. Todas as vezes que aqui vim, as portas estavam fechadas, salvo raras excepções. Naquele dia estavam todas abertas.
- Reconheço o que está submerso. Mas há algo que não compreendo. Habitualmente as portas estavam fechadas, não havia água, nem tu existias.
- Não? Que idiota. - disse-me enquanto se ria, seguindo-se um longo suspiro - Quando as coisas mudam é porque algo as fez mudar. Se algo estranho acontece é porque algo desencadeou esse acontecimento estranho. Percebeste, idiota? Na tua terra a soma de um mais um não é dois? Lá porque tu nunca te deparaste comigo ou com esta água, não significa que ela não existisse. Falas como se já tivesses explorado tudo o que há dentro de ti. Não sejas tão arrogante.
- O que é que aconteceu?
- Tenho de explicar tudo. Vamos por partes. Lembra-te bem que foste tu que perguntaste. O que aconteceu foi o teu pai.
Naquele momento aproximei-me dele e dei-lhe um murro. No momento que o atingi senti que tinha esmurrado o meu reflexo e também o murro se tinha reflectido em mim. Abalado pelo choque levantei-me para perceber que ele continuava sentado na sua cadeira, com o rosto apoiado no punho, impávido e sereno.
- Se continuares assim vais acabar por ser engolido por este oceano e, sinceramente, não me parece que essa ideia te agrade muito rapaz. Portanto, continuemos. Voltemos ao passado por instantes. Recordemos um momento que, aparentemente, desejaste com tanta força esquecer que acabaste mesmo por o esquecer. Quanto nasceste a tua mãe morreu. Morreu para tu poderes viver. Caso não saibas, ela pode escolher. Escolheu-te a ti. Sacrificou-se para que pudesses viver, para teres uma oportunidade de seres feliz. Mas esse acontecimento isolado não te traz mágoa nenhuma. Pelo contrário, até te enche de força. Não é por mim, é por ela, era o que pensavas quando te faltava as forças nas pernas e estavas perto da meta. Sim, pensavas. Cresceste numa casa dividida com o teu pai, apenas os dois. Nunca tiveram uma grande relação, a verdade é essa. Tinham respeito um pelo outro, falavam durante as refeições e pouco mais. Essa não é a relação entre um pai e um filho. É a relação entre dois conhecidos que estão a partilhar o mesmo tecto. Passaste as noites a questionar-te porque é que as coisas eram assim. Quando visitavas Snow percebias que entre ele e o pai dele havia qualquer coisa que não havia em tua casa. Todos os dias te perguntaste o mesmo, até ao dia 23 de Novembro. Como é que te esqueceste, River? Desejaste assim tanto esquecer? Qual era a tua ideia? Fugir? Pensaste que varrendo o lixo para debaixo do tapete que te irias esquecer que ele está lá? Tu até te poderias esquecer, mas ele iria sempre lembrar-se de ti e, um dia, iria surgir. Nesse dia o teu pai deixou-te à porta dos teus avós e disse-te o seguinte: "Não és meu filho. Não te consigo ver como tal. Quando olho para ti apenas vejo um assassino que me tirou a mulher que eu amava dos braços. Nem era para teres nascido sequer, nunca foste desejado. Infelizmente por mais que deseje e que tente não te consigo matar. É como se ela me impedisse. Mesmo assim, não consigo viver com o monstro que tu és. Adeus, River." Foi com estas palavras que o teu pai te deixou à chuva, à porta dos teus avós. Virou-te as costas e nunca mais o viste. Até hoje. Entendes agora de onde veio este oceano? Entendes agora o que ele é? Este oceano é o ódio que lhe guardaste durante todos estes anos. Quanto mais desejaste esquecer, mais o alimentaste e ele cresceu. Achaste que fechando a maioria das tuas emoções as coisas seguiriam calmamente e encontrarias o ponto médio entre a felicidade e a tristeza. Achaste mal. Tal ponto não existe. Isto é tudo o que tu és. O teu verdadeiro ser. São os teus sentimentos que estás a pisar neste momento. Foram eles que te elevaram até aqui.
Fiquei calado a digerir o que me tinha sido dito. Não sabia como reagir. Não sabia o que sentia. Não podia dizer que era mentira, eu sabia que era a verdade.
- E tu? Quem és? - perguntei após concluir a digestão de todas as palavras.
- Eu sou o teu eu interior. Represento-te a ti e tudo o que está dentro de ti.
- Portanto, tu és eu?
- Exacto. Diria mais que tu é que és eu. Sê bem vindo, River.
A sua voz foi-se perdendo no espaço, enquanto este era engolido por uma escuridão profunda. O oceano começou a ondular violentamente acabando por me prender dentro dele.

- Ele está a abrir os olhos! - disse uma voz familiar, bem longe.
- Para onde é que foi toda a água?
- Água? Mas estás parvo ou que? - disse Snow rindo-se - Segundos os médicos tiveste uma quebra de forças ou como se diz. Conversas de médicos, já sabes como é, não foi nada de grave. Estás pronto para outra rapaz!
Olhei à minha volta. Estava no estádio. Presumi que como não tinha sido nada de grave não me tinham levado para o hospital, assistindo-me ali. Provavelmente não tinham era vontade de perder a borla para ver o jogo.
- Snow, vamos embora? - perguntei enquanto me levantava.
- Sim.
No caminho de volta não conseguia pensar noutra coisa se não no que aconteceu. Quanto mais perguntavas fazia, mais respostas encontrava e isso enchia-me de medo. Tinha medo de saber de mais.
- Snow...
- Diz. Não me digas que vais cair para o lado outra vez!
- Não é isso. - disse eu, ignorando a chuva começava a cair sobre mim. - Sabes... até certo ponto da minha vida, vivi no escuro. Mas nessa escuridão, havia pequenas estrelas que adornavam a escuridão. Um dia, o sol nasceu. Bonito e brilhante como nunca. Agora sinto que o sol desapareceu e os meus olhos, acostumados à sua luz, não são mais capazes de observar as pequenas estrelas que adornavam esta escuridão...
- River...



Crow.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Requiem - Terceiro Turno

I
II

III

Depois daquele dia não se falaram mais. Duas pessoas normais estariam nesta altura a desfilar pelo recinto escolar de mãos dadas, exibindo o seu "amor". Eles não. Nem uma única palavra trocaram. Parecia que a presença um do outro era suficiente para saciar o que sentiam. Talvez se encontrassem às escondidas. Não, pouco provável. Quando não havia nenhum motivo para estudar ele vinha a minha casa e passávamos a tarde a jogar e duvido que ele escondesse algo de mim. Possivelmente sou a única pessoa em quem ele confia completamente, aquilo que se pode chamar de "melhor amigo", portanto posso muito bem excluir esta opção. Fora que se ele me contou o que se passou entre eles os dois, não tinha razões para me esconder o resto. Ao que parece é assim que funciona o amor entre dois génios.
- Para onde é que estás a olhar? - Perguntou-me River, de forma algo hostil.
- Porquê? Estavas a ficar incomodado era? Olha que ela não ia gostar disso! - Aproveitei eu para brincar com a situação.
Ele não respondeu. Soltou todo o ar que lhe preenchia os pulmões na forma de um suspiro e seguiu em frente.
- Não precisas de ficar chateado! - disse-lhe.
- Não fiquei.
O resto do caminho foi feito em silêncio. Ele parecia perdido dentro dele, como se procurasse a peça que lhe falta para terminar o puzzle, peça essa que caiu num canto escuro e escondido. Eu também não fazia intenção de o interromper, portanto, sem algo de interessante para dizer, fiquei calado.
A minha casa ficava primeiro, portanto o resto do caminho ele fazia-o sozinho. Às vezes penso que ele até dava graças por isso. Tinha cerca de dez minutos onde podia andar, silenciosamente, perdido no azul encantador do céu, como se quisesse saber quem ali o colocou, sendo apenas interrompido por tropeçadelas constantes na calçada maltratada.
- Adeus! - berrei de forma alegre.
- Espera.
- Hm? Diz.
- Eu sou... estranho? - perguntou de forma hesitante.
- Estranho? Porquê?
- Por não sentir necessidade de estar com ela. Estar como quem diz, andar com ela de um lado para o outro. Tenho a certeza que ela também se sente assim. A verdade é que não tenho mesmo necessidade de estar com ela. O simples facto de a ver ali, perceber que ela está feliz, deixa-me feliz. - desabafou.
- Sim, és estranho. - respondi sem hesitar.
- Obrigado.
- Espera! Estava a brincar. Não te acho estranho. És um idiota sonhador e, aparentemente, um romântico. Talvez isso já venha incluído no idiota, mas por agora convém fazer distinção das duas coisas. Eu não acho isso estranho. Estranho seria ver-te seguir o padrão normal da sociedade. Estranho seria ver-te fazer o que os outros fazem e tu tanto tempo perdes a criticar. É bom ver que nem o amor, o mítico sentimento capaz de derrubar toda e qualquer racionalidade, te fez sucumbir. Para te considerar estranho teria de alterar os alicerces nos quais ergui a minha vida e isso não só daria uma trabalheira do caraças, como não me apetece minimamente. Gosto bastante e orgulho-me deles. Tudo isto para dizer que para mim não és estranho e que ser estranho não é necessariamente mau. Tens em ti o amor que toda a gente sonha, o amor romântico dos poemas e dos contos de fadas. Para os outros talvez seja estranho, não estão habituados. Para mim não. Eu até acho piada! A única coisa estranha aqui é questionares-te dessa forma.
- Idiota.
Naquele momento, quando me chamou idiota, significou que aceitou o que eu disse. Era sempre assim. Quando ele não sabia o que dizer ou o que fazer, chamava-me idiota. Não pensei mais naquilo, entrei em casa e dormi sobre o assunto. A minha missão enquanto amigo foi cumprida.

- Snow, acorda, o River já está à tua espera!
- Porra!
Levantei-me à pressa, corri pela casa atirando ao chão o que não me interessava, transformando um quarto arrumado de forma organizada num campo de batalha., tudo isto enquanto comia uma torrada quase que completamente queimada (gostava delas assim) e me vestia ao mesmo tempo. Realmente, era mesmo um fenómeno da natureza. Tudo isto porque era dia de jogo grande! A equipa da cidade jogava contra a equipa rival e River tinha arranjado bilhetes. Era um jogo de ânimos quentes e o único momento em que, para nós, a lógica, a racionalidade, tudo isso era posto de lado. Toda a decisão contra a nossa equipa era errada e toda a decisão a favor era certa. Era como se uma neblina nos toldasse a vista, autorizando-nos apenas a ver o que nos interessava.
- Desculpa, vamos! - disse-lhe, enquanto recuperava o folgo.
- Não faz mal - disse ele, rindo-se - vim mais cedo, já sei como é que és.
Entramos no estádio e já este se encontrava bem composto. Deviam estar cerca de vinte mil pessoas. Não, talvez trinta mil! A lotação estava a abarrotar. Do lado onde estavam os adeptos rivais ouviam-se assobios aos cânticos da nossa bancada. O jogo ainda nem tinha começado e já os ânimos estavam quentes, com a policia a ter de intervir por duas vezes. Parecia um espectáculo de luta entre duas aguarelas. A verde tentava engolir a pequena mancha vermelha, tornando-a da sua cor, mas esta resistia e com a força da sua voz tentava libertar-se do verde que a rodeava.
- River, onde são os nossos lugares? - perguntei - O jogo está quase a começar!
- Snow...
- Quase não te oiço!
- Snow... é o meu pai... - disse ele, apontando para o, aparentemente, treinador da equipa adversária.


Crow.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Requiem - Segundo Turno

Link do Primeiro Turno.

II

Mia tinha um dom. As pessoas diziam que era divino, diziam que era algo sobrenatural. Ela apenas respondia com um sorriso gentil. Desde pequenina sempre foi boa com o piano. Atingiu o auge das suas capacidades quando ao olhar nos olhos de uma pessoa aprendeu a tocar os sentimentos dela no piano. Para ela o piano não era mais um instrumento musical, mas sim um espelho que reflectia a realidade dos sentimentos daquela pessoa. Foi assim que nos falámos pela primeira vez. Era hora de almoço, Snow estava ocupado a lutar contra uma gripe e eu fiquei sozinho. Não era uma situação agradável, mas também não era desagradável. Muitas das vezes, mesmo acompanhado, eu acabava por ficar sozinho, engolido pelos meus pensamentos, portanto a diferença entre aquela situação e o habitual era apenas a presença física. O mais provável era acabar por me sentar no banco e enquanto comia acabar por me perder novamente dentro de mim, esquecendo se estava sozinho ou acompanhado.
Sentei-me no banco. Ainda estava ligeiramente molhado da chuva dos dias anteriores, mas o cheiro a chuva que emanava fazia-me ignorar esse facto, dando-me um gosto especial estar ali sentado. Rapidamente, enquanto comia, os pensamentos começaram a fluir. Quando isso acontecia, era como se estivesse em coma. Nem um trovão me despertava. Dava por mim num mundo completamente diferente. Num mundo onde toda a gente era feliz. Um mundo utópico, que nunca iria existir. Mesmo tendo noção disso, nada me impedia de me sentar naquele banco de jardim a dar bocados de pães a pombos. Confortava-me ver as pessoas passar naquele jardim com um sorriso genuíno no rosto. Confortava-me ver os animais também felizes. Os gansos flutuavam no lago de forma majestosa, partilhando-o de forma igual e justa com os patos, que andavam em grupo apesar das suas diferenças, ignorando a possível existência de um patinho feio naquele mundo. Se ele existia, eles aceitavam-no como era e respeitavam-no. Tão simples quanto isso. Não era preciso um estudo científico para perceber isso. Um homem com um casaco bege oferecia uma flor à sua amada e esta abraçava-o com um brilho nos olhos. Na telefonia de um grupo de senhores idosos ouvia-se um noticiário sem anunciar um único acidente, uma única guerra. Olhei para o céu e sorri.
- Estou em casa. - pensei para mim.
Fechei os olhos e deixei-me sonhar.
Não deviam ter passado nem dez minutos quando fui acordado por uma agradável melodia e isso reflectiu-se num misto de emoções. Frustração por ter sido arrancado a ferros, pela primeira vez na vida, de casa e uma sensação de calma por aquela bela melodia. Guiado pela curiosidade, como se de um marinheiro atraído pelo canto de uma sereia me tratasse, encaminhei-me para o sítio de onde vinha aquela obra prima. Não hesitei em entrar da sala de onde vinha e sentei-me numa cadeira sem fazer barulho. Era Mia quem tocava. Estava vestida com um vestido azul e uma flor adornava o seu cabelo castanho. Fiquei deliciado. Se pela musica, se por ela, não sei realmente. A verdade é que sentia o coração na palma das mãos, sentia que ele poderia saltar pela boca a qualquer momento. Sentia cada nota musical entrar-me pelos ouvidos, voar por cada milímetro do meu corpo para no fim aterrar no coração.  Nem sei quanto tempo passou, mas penso que fiquei horas a ouvi-la tocar. Quando parou, parecia que tinha saído de um transe. Não conseguia evitar lembrar-me das histórias de marinheiros encantados por sereias, guiando-se para a morte.
- Gostaste? - perguntou-me ela.
- Desculpa, não queria incomodar. - retorqui, surpreendido e algo corado. - Adorei. A sério.
Ela aproximou-se de mim e olhou-me nos olhos. Ambos ficámos com os rostos encarnados, como se cada litro de sangue se tivesse concentrado ali para uma reunião de família. Apesar disso, algo me impedia de virar a cara e sei que a ela também. Como sei, não sei, mas a verdade é que sei. Com o passar do tempo comecei a sentir-me assustado. Sentia que ela estava a percorrer cada uma das divisões do meu interior, sem minha autorização.
- Porque é que é proibido entrar aqui? - perguntou-me.
- Nem eu sei bem. Sei que surgiu dentro de mim há uns anos, mas nunca quis lá entrar. Para dizer a verdade, tenho demasiado medo. As pessoas têm medo do desconhecido, sabes? Quando essa divisão surgiu tive sensações que achei que me podiam dominar completamente e tomar conta de mim. Não quero isso. Gosto bastante da minha racionalidade e de me manter lúcido. Presumo que tenhas visto todas as outras.
- Presumes mal. Não vi nada. São coisas tuas. Se elas estão fechadas, é porque tu queres. Não me cabe a mim lá entrar. Quando tu quiseres entrar, fá-lo-ás. Vais ter de entrar lá um dia de qualquer forma...
- Mais vale acompanhado. - disse eu interrompendo-a, sem saber o que me tinha passado pela cabeça para dizer tal coisa.
Ela respondeu-me com um sorriso, pegando na minha mão. Quando o fez, as fitas com linhas pretas e amarelas que proibiam a entrada, bem como o cadeado e o sinal desapareceram. Desfizeram-se em pó e foram levados pelo vento. Com a mão sobre a minha, abrimos a porta. Do outro lado da porta estava uma árvore com um ovo perto dela.
- Um ovo? - perguntou ela pegando nele.
- Sim, um ovo. Porque é isso que o amor é. Não passa disso. Um simples ovo. Um ovo com uma vida lá dentro. Mas ao contrário do normal, nós não podemos deixar esse ovo eclodir. Se deixarmos o que está dentro dele sair cá para fora, só vai surgir mágoa e tristeza. É isso que ele tem dentro dele. É isso que é o amor. Um ovo carregado de sentimentos negativos. Se alguém partir o ovo, irá surgir uma tempestade. Quando duas pessoas se amam, o objectivo delas é, em conjunto, tratar do ovo.
Ela assentiu com a cabeça, pegou na minha mão e saímos daquela sala.
Quando voltei a abrir os olhos, era eu quem estava a tocar piano. Ela, com as mãos dela, guiava-me gentilmente. Em conjunto, tocávamos uma melodia encantadora. Não era Bach, não era Beethoven, mas era uma descarga dos sentimentos de duas pessoas. E isso é suficiente para formar uma obra prima.

domingo, 10 de outubro de 2010

Requiem - Primeiro Turno

I

Era o meu primeiro dia de aulas. A entrada para o primeiro ano é sempre especial. É ali que se vai iniciar, teoricamente, a nossa formação profissional, é naquela escola que faremos muitos dos amigos que nos acompanharam durante a vida, é ali que iremos passar por experiências de coisas que nunca antes imaginámos que existissem. Estavam todos num estado de excitação enorme, procuravam amigos que conheciam porque os pais também eram amigos, então eles também teriam de ser. Outros choravam porque tinham medo de deixar a asa dos pais. Não conseguia sentir nada mais do que dó deles. Preferiam ficar aconchegados debaixo daquele escudo protector em vez de correr atrás do futuro, cair, esfolar os joelhos, mas acabar sempre de pé. A única coisa que me passava pela cabeça é que era aborrecido. Muito. Não me apetecia fazer nada. Apetecia-me ficar ali deitado a olhar para as nuvens para sempre. De vez em quando passava um pássaro que voava rumo ao seu destino, como se me estivessem a avisar que não podia ficar ali para sempre e também eu tinha de ir a algum lado. Eu queria que o tempo parasse, mas sabia bem que isso só seria possível na minha cabeça. Ao som daquela campainha velha e irritante levantei-me, peguei na mochila e procurei pela minha sala. "Lembra-te, é a sala um!" foi o que a minha avó me disse. Quando encontrei a sala lembrei-me do que tinha pensado quando ela me disse qual era a sala. "Sala um para o número um!".
Entrei e sentei-me num lugar escolhido ao acaso. Não queria ficar à frente. Esses lugares são para dois tipos de pessoas: os que se matam a estudar ou os lambe-botas. Ou então um misto dos dois. Optei por me sentar num lugar atrás, perto da janela para poder ver as nuvens. Tinha sido o primeiro a chegar e essa ideia não me agradava muito, mas já ali estava, não havia muito que pudesse fazer. A ritmo de conta-gotas foram entrando todos os outros alunos. Lembrava-me uma tímida chuva miudinha que aparece na altura da transição de Verão para Outono.
- River! - disse um rapaz do lado de fora da janela.
Respondi-lhe com um sorriso. Snow é provavelmente aquilo que eu poderia chamar de melhor amigo. Segundo consta, desde a maternidade que nos conhecemos. Nascemos no mesmo dia gelado de Inverno, os nossos pais conheciam-se e desde que me lembro de existir Snow sempre foi meu amigo e sempre brincámos juntos. Não é que fossemos irmãos, mas a verdade é que éramos bastante parecidos. Ambos tínhamos uma estatura normal da idade, nem muito grande, nem muito pequenos. Provavelmente nos nossos dezoito anos iríamos atingir ambos, no máximo, o metro e oitenta. A maioria dos outros rapazes usava o cabelo curto aproveitando para o levantar de diversas formas e feitios, mas nós tínhamos ambos o cabelo algo grande, o suficiente para ficar perto de nos tapar os olhos e de cor castanho claro, perto do loiro. A principal diferença assentava na cor dos olhos. Os olhos dele eram brancos e os meus azuis. Quando ele nasceu os médicos pensaram que ele teria algum problema grave mas a verdade é que não acharam nada que lhes desse garantias disso e ele é um rapaz perfeitamente saudável. Acabaram apenas por considerar um raro fenómeno da natureza e era assim que normalmente acabavam as nossas conversas. "Eu sou um raro fenómeno da natureza e tu és o homem que irá superar Deus!".
- Tenho alguma coisa na cara? - perguntou-me ele esfregando a cara.
- Não, desculpa. - respondi enquanto me ria - estava só a sonhar acordado.
- Como costume. Já agora, que sala é essa?
- Um.
- É? Ainda bem. Parece que ficamos os dois na mesma sala. Ainda bem que te encontrei aí dentro, não sabia onde era a sala e o mais provável era acabar por desistir de procurar e ir para casa. Tenho sono sabes?
Voltei a rir-me. Quando dei por mim já ele tinha saltado pela janela para entrar dentro da sala. Quando entrou fez questão de sentar-se na mesa ao lado da minha, espantando com o olhar outro rapaz que para lá se dirigia.
Passaram-se perto de dez minutos até entrar uma senhora na sala. Era alta, devia estar perto do metro e setenta e cinco, tinha os olhos verdes e vinha vestida como se viesse de um piquenique. Tinha um vestido verde com flores para combinar com a cor dos olhos e um chapéu de palha com uma flor. Quando entrou todos se calaram, apesar do ar maternal ela aparentava ser capaz de nos arrasar, como um tornado arrasa uma cidade inteira, só com a voz.
- Olá, o meu nome é Lenna - dizia ela enquanto pousava o chapéu em cima da mesa - e vou ser a vossa professora durante os próximos quatro anos. Vou agora chamar-vos por ordem e depois quero que me digam um pouco sobre vocês. Foi chamando um a um por ordem alfabética e marcando no pequeno caderno que tinha na mão alguma coisa que eu não sabia mas que tinha uma certa curiosidade em saber. Gostava de ter o poder para parar o tempo e ir lá espreitar sorrateiramente o que ela estava a escrever. Eu devia ter prestado atenção para memorizar alguns nomes, afinal, iam ser meus colegas durante 4 anos, seria conveniente saber os nomes das pessoas com quem ia lidar. O que fiz foi exactamente o contrário, acabei por me desligar completamente a observar o céu. Quando voltei à terra já ela ia no r, mais precisamente num tal Renato. Quanto mais olhava para ele mais o achava burro. Não sei porquê, simplesmente achava.
- River? - perguntou ela.
Levantei o meu braço como assinalando que era eu.
- Tens um nome bastante interessante. É invulgar. Sabes o que quer dizer?
- Sim, river quer dizer rio em inglês.
- Muito bem. Porque é que tens esse nome? Sabes?
- Não. Nunca me foi dito porquê, mas também nunca questionei. Talvez os meus pais quisessem que eu funcionasse como um rio, ou seja, que fosse crescendo calmamente até ao momento em que atingiria o oceano e tornar-me-ia parte dele. Mas não é isso que vai acontecer.
- Não? Porquê?
- Porque eu tenho objectivos. Ou sonhos, se preferir. Não quero ser mais um no oceano, quero ser mais que isso. Se eu quisesse estudar, tirar boas notas e trabalhar para uma boa empresa não me parece que tivesse a menor dificuldade. Mas qual seria a piada disso? Uma vez li um livro no qual o herói dizia que se a escolha for entre a tempestade e a paz, devemos escolher sempre a tempestade. É esse o meu caminho.
Iniciou-se uma conversa miúda na sala. As raparigas diziam entre si "ele tem a nossa idade e já sabe ler? Espantoso!" e os rapazes comentavam entre si "mas quem é que ele pensa que é?". Seja como for, era-me indiferente. Apenas disse o que me apeteceu dizer e não havia nada que pudesse fazer agora.
- Muito bem. - disse ela depois de mandar todos calarem-se.
Ainda ficou a olhar para mim um bocado. Parecia que me estava a tentar entrar pelos olhos e ver dentro de mim, como se eu fosse um livro e ela quisesse ler a minha história. Se conseguiu, não sei, mas confesso que me senti fraco perante aquela tentativa. Deve ter demorado apenas alguns segundos, mas da forma como se senti assustado senti que tinha demorado horas.
- O próximo é...
- Sou eu! - disse Snow interrompendo-a.
- Snow?
- Sim!
- Vocês os dois são bastante parecidos. São irmãos?
- Não. Pelo menos geneticamente não.
- Aproveito e faço a mesma pergunta que fiz ao teu amigo: sabes o que é que o teu nome quer dizer?
- Sim. Snow quer dizer neve em inglês. Antes que pergunte, eu respondo-lhe já: chamo-me Snow porque os meus olhos são brancos como a neve e isso faz de mim um fenómeno da natureza! - apresentou-se ele como se do super herói se tratasse.
Todos, incluindo a professora, ficaram a olhar para os olhos dele. De facto, eram mesmo brancos como a neve. Não eram um branco vazio, como se ele não tivesse emoções e tudo dentro dele fosse um enorme vazio. Era um branco estranhamente vivo e afável. Um branco de neve.
- Muito bem - voltou ela a dizer, desta vez no meio de um sorriso - parece que temos aqui gente com bastantes capacidades.
A conversa prolongou-se mas eu mais uma vez desliguei-me. Não conseguia ter o mínimo interesse em estar ali e continuava a aborrecer-me. Para minha felicidade, aquele lugar onde me sentava permitia-me abstrair-me de tudo enquanto olhava para o céu. Quando o fazia, sentia-me como um verdadeiro pássaro. Tudo o que me rodeava era engolido pelo azul do céu e eu voava calmamente por entre as nuvens. Nada me incomodava e eu era feliz. Fiquei a sonhar com isto durante bastante tempo.
Fui acordado do meu sonho novamente por aquela campainha irritante. Se pudesse desfazia-a. Faria questão de a apresentar a um martelo. Depois aí sim, queria ver se ela novamente se atrevia a acordar-me.
- Pronto, agora é o vosso intervalo. Têm 30 minutos para comerem alguma coisa ou para irem brincar. Não se esqueçam que quando der o toque novamente têm de voltar!
Todos saíram a correr pela porta, ansiosos por um pouco de liberdade. Nada de surpreendente, era a natureza do ser humano procurar ser livre e ansiar a cada segundo pela liberdade absoluta. Liberdade essa que nunca iria obter. Nunca passará de uma ilusão. Enquanto andarem presos pelo tempo, nunca serão livres. Sentei-me sozinho num banco a observar toda a gente. Passei os olhos por tudo e todos. Tudo me parecia tão igual, como se fossem tirados a papel químico uns dos outros. Deviam ter-se passado dez minutos de observação quando os meus olhos pararam numa rapariga. Fiquei parado a olhar para ela e nem sabia o que estava a pensar. Se havia uma ligação entre o meu cérebro e os meus pensamentos, ela estava bloqueada naquele momento. Quando ela olhou para mim não consegui evitar desviar o olhar e corar ligeiramente. Foi mais forte que eu. Sentia-me um verdadeiro idiota. Pelo canto do olho percebi que lhe tinha acontecido o mesmo.
- River! Anda jogar! - gritou Snow do campo onde quase todos os rapazes se reuniam para jogar futebol.
Esfreguei a cara, assenti com a cabeça e fui a correr. Snow meteu-me na equipa dele e disse-me para ficar na frente. O tempo passou a voar, pelo meio de joelhos esfolados, lágrimas e risos. No fim do jogo aqueles estranhos cujos nomes eu nem sabia falavam comigo como se tivéssemos trinta anos e nos conhecêssemos desde que nascemos. Era estranho, mas era uma boa sensação. Eu e Snow tinhamos os cotovelos esfolados e pingavam sangue até dizer chega, mas acabámos por achar isso normal e engraçado e fomos para dentro da sala.
- Snow! River! - gritou Lenna. - O que é que andaram a fazer? Já viram o vosso estado?
A verdade é que não estávamos muito apresentáveis. Tínhamos a roupa empoeirada, os cotovelos a pingar sangue e as calças rasgadas nos joelhos. Mandou-nos ir para a enfermaria e garantiu que não passávamos sem uma nota para os nossos pais.
- Provavelmente ela pensa que lutámos um com o outro. - disse Snow a rir-se, deitado na cama da enfermaria.
- É o mais provável. - concordei eu.
Snow foi-se embora primeiro que eu. A enfermeira tratou primeiro das feridas dele só depois das minhas. Quando me limpou a ferida com álcool não pude evitar cerrar os dentes. Parecia que me davam a cravar um ferro em brasa na pele e que o meu corpo ia entrar em combustão naquele instante, no entanto, fiz-me homenzinho e aguentei a dor. Quando saí da enfermaria, Snow estava à minha espera.
- Não devias estar na sala? - inquiri.
- Achei que devia esperar por ti. Mia, não é?
- Quem? - perguntei, não resistindo a corar ligeiramente.
Snow riu-se e, sem me responder, foi para a sala. Fui atrás dele, sempre a perguntar de quem é que ele estava a falar mas sem obter resposta.
- Muito bem Mia! - parabenizava a professora. - Já estão de volta vocês? Vão para os vossos lugares e não voltem a repetir a brincadeira!
A rapariga que estava no quadro era a mesma que eu tinha visto. Não fazia a mínima ideia que ela sequer existia até aquele momento, quanto mais que fazia parte da minha sala. Parecia um jogo doentio planeado por alguém antecipadamente. Não pude deixar de sentir que naquele dia tinham-se aberto portas dentro de mim para divisões que eu nunca tinha visitado antes. Alguém contratou um empreiteiro e sem minha autorização remodelou a minha casa, adicionando-lhe um novo andar. Naquele momento, achei correcto limitar-me a colocar um cartaz que dizia "Abandone toda a esperança aquele que aqui entrar" e esqueci o assunto. Achei que era o melhor.

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Crow.

Explicação: Requiem é uma história simplesmente complexa. Faz parte da ambição de escrever para todos, não só para intelectuais. Ou seja, pegando num tom simples e dar-lhe a maior complexidade possível, fazendo cada um sentir a história desenrolar e ver a sua interpretação surgir à frente dos seus olhos. Cada turno representa uma parte da história. Esta é a primeira parte. Obrigado a todos.

sábado, 2 de outubro de 2010

O Mapa do Sorriso


Acordei quando o relógio marcava cinco e trinta da manhã. Estava programado para esse fim, soltando um som semelhante a um gato a ser esfolado. Não era propriamente agradável, era sim irritante o suficiente para me acordar. Levantei-me ainda a dormir e dirigi-me à casa de banho para começar o dia. Urinei como se estivesse há uma semana sem o fazer e preparei-me para tomar banho. Era o ritual de todas as manhãs, repetia-o há anos e não via porque mudar. Enquanto a água jorrava da torneira fazendo um barulho que invadia o silêncio até lá instalado dirigi-me à cozinha para beber um copo de água. Enquanto o fazia, senti um corpo pequeno e peludo a esfregar-se na minha perna.
- Olá amigo. – Disse eu, baixando-me para lhe passar a mão no pelo.
O meu gato respondeu com um miau de contentamento, deitou-se junto ao meu pé e ficou a olhar para mim. Sorri de volta e disse-lhe que não tinha tempo para brincar com ele agora.
Enquanto tomava banho e era despertado pela água quente que me batia no corpo, surgiu-me na cabeça o sonho que tive. No meu sonho, estava sentado no escuro, o ar era rarefeito e a única coisa que se ouvia era um gotejar. Parecia que as gotas caiam ritmicamente em algo metálico, orquestradas por aquela escuridão aterrorizante. Quanto tempo fiquei ali sentado e imóvel ao certo não sei, mas sei que fiquei o suficiente para começar a pensar que ia morrer. Para mim, aquilo não era um sonho. Por algum motivo obscuro tinha sido transportado da minha cama para aquele lugar escuro, onde não conseguia ver nada e a única coisa que eu sabia o que existia ali era a minha pessoa e aquele gotejar. Não sabia o que estava no escuro e isso aterrorizava-me. E muito. Preferia saber o que estaria ali, com o que estaria a lidar. Provavelmente poderia ficar assustado na mesma mas aí eu poderia pensar nalguma forma de lidar com o que estava à minha frente. No escuro não, eu não sabia o que estava ali. Se é que sequer estava alguma coisa. Petrificado como uma estátua budista de um monge em meditação fiquei sentado no escuro enquanto era invadido por suores frios, espelho do medo que me consumia lentamente por dentro. Subitamente um feixe de luz apareceu. Não sei se estava perto ou longe, aquilo parecia-me um espaço infinito e não era capaz de distinguir as distâncias. Sei sim que estava a uma distância suficiente para me dizer de forma audível «ela está em perigo!». Não fui capaz de responder. Queria perguntar de quem a voz estava a falar, a quem pertencia a voz, onde estávamos, mas continuava com demasiado medo para reagir. O facto de ainda respirar era para mim uma surpresa, da forma como todos os meus músculos estavam congelados pensei que os meus pulmões também tinham parado já há muito tempo. Pouco a pouco comecei a reparar que a luz se aproximava, lentamente, ecoando a tal frase. Quando ficou mesmo à minha frente senti uma sensação de calor, como se de um abraço maternal se tratasse. O gelo que me impedia a minha locomoção foi derretido nesse momento e pela primeira vez naquele curto (ou longo) espaço de tempo fui capaz de me mover.
- Ela quem? – Perguntei enquanto me levantava, mexendo cada músculo como se quisesse garantir que cada um deles estava mesmo a funcionar.
Da parte da luz não obtive resposta. Dentro da luz apenas conseguia ver uma figura branca cujo rosto eu não conseguia ver pois o brilho da luz cegava-me quando eu tentava. A figura branca pegou na minha mão e puxou-me para a luz. O cenário subitamente tinha mudado. Antes estava num sítio escuro, frio, com o ar podre e rarefeito e com uma torneira ou algo do género que gotejava com a função de levar alguém à loucura. Algo semelhante a um calabouço de uma prisão pré 25 de Abril. Quanto mais pensava nisso, mais me esquecia de onde estava e imaginava-me como um revolucionário de cravo ao peito, capturado pela polícia do estado e sendo sovado com o objectivo de que me retirassem informações. Fugindo desse pensamento dava por mim num lugar completamente oposto ao anterior. Um sítio iluminado, quente, onde o ar era limpo e cheirava a flores. Perdi algum tempo a tentar desmistificar que flor era, mas desisti rapidamente. Nunca foi algo que me agradasse muito, mas era melhor que o cheiro a podre que me agoniava anteriormente.
- Ela está em perigo! – Repetia incessantemente aquele espectro.
Não perdi o meu tempo a perguntar quem. Sabia que não ia obter uma resposta. Quanto a frase era repetida, mais surgia no meu ouvido a repetição da palavra perigo.
- Perigo? – Perguntei eu.
Finalmente obtive uma resposta. O tal espectro moveu a cabeça para cima e para baixo, ou seja, respondendo de forma afirmativa. Logo após isso começou a afastar-se. Aparentemente era afastado contra a sua vontade, pois parecia que esbracejava violentamente contra algo que eu não conseguia ver. Comecei a correr atrás. Quanto mais eu corria, mais longe parecia que ele ficava, mas enquanto o consegui ver continuei a correr. Chegou a um ponto que simplesmente desapareceu. Não restava nenhum sinal, nenhuma marca. Fiquei novamente sozinho, desta vez nesta divisão iluminada. Quando me sentei reparei que ao meu lado estava um piano. Quando era pequenino queria um. Não sei porquê, mas fascinava-me quando via as pessoas tocarem piano e queria aprender a tocar. Ainda hoje queria, mas não era um desejo tão forte como antes. Quando me sentei ao piano, tudo mudou novamente. Agora eu vestia um fato preto com riscas brancas e uma gravata vermelha. Tinha fios pretos ligados aos dedos que me faziam tocar incessantemente contra a minha vontade. Tentar lutar contra aquele controlo era inútil portanto conformei-me e deixei-me levar. Como um naufrago que se perde em alto mar e se resigna com o seu triste destino. Fica sentado na sua jangada, observando o mar e o céu. Pensa que se fosse um pássaro, poderia voar dali para fora. Se fosse um peixe, estaria em casa. Quando percebi, os fios quebraram-se e eu tocava sozinho. Mas tocava por minha vontade. Por mais bizarro que parecesse, eu, que nunca tinha tocado piano, estava naquele momento a tocar com mestria uma das obras de Yann Tiersen. Fiquei ali a tocar até voltar a suar abruptamente, tal e qual como quando corri atrás do espectro. Quando parei e me levantei, uma enorme mancha negra passou por cima de mim e tudo voltou ao normal. O piano desapareceu, o fato com a gravata vermelha também e eu estava de volta à minha roupa de dormir. De volta à realidade da sala iluminada, senti que estava ainda mais brilhante. Tive dificuldades em manter os olhos abertos e quando consegui finalmente manter um nível onde me fosse permitido ver o que estava à minha frente reparei que no lugar onde estava o piano, estava uma mesa com um gira discos. Estava coberto de pó, assim como o disco que se encontrava ao seu lado. Curioso, soprei o pó que em cima de ambos se encontrava e coloquei o disco a tocar. Começou com uma bela e calma melodia de violino, até que começou a emitir um som insuportável. Um ruído estridente, como que se alguém estivesse a ver as suas cordas vocais a serem esticadas enquanto que ao mesmo tempo era apunhalado por 20 homens que o faziam perfeitamente sincronizados. Foi nesse momento que acordei.
Quando saí do banho percebi que tinha ficado hora e meia debaixo de água. Sequei o cabelo com a toalha rapidamente, enquanto ao mesmo tempo me queixava que se tivesse o cabelo curto não teria estes problemas todos, e vesti-me de forma igualmente rápida. Peguei numa fatia de pão, barrei-a com manteiga, meti-a na boca e saí de casa a correr. Não disse adeus a ninguém, os meus pais ainda dormiam e não os queria incomodar. Eles sabiam onde eu ia e a que horas voltava, portanto não era algo de mais. Quando fazia isto ficava sempre com o pensamento de que se não voltasse a casa não lhes teria dito adeus. Confesso que a ideia me atormentava ligeiramente, mas não me preocupava muito. Acreditar que iria voltar confortava-me mais do que deixar-me atormentar por tais improbabilidades.
A caminhada para a escola é sempre agradável durante esta altura do ano. O ligeiro frio é contrastado pelo calor do sol matinal que me bate na cara e força-me a fechar os olhos enquanto ando. Isso faz-me reflectir. É como se o meu interior se deslocasse para fora do meu corpo, enquanto este continua a caminhar de forma automática em direcção ao seu destino e o meu interior senta-se no seu ombro aproveitando a boleia e pensando. Uma das coisas que mais me surge na cabeça é que irei chegar à escola e irei ver os meus amigos. Pergunto-me para mim se os quero ver. Surge-me a hipótese de não querer ver, mas rapidamente se dissipa. Eles são meus amigos, portanto eu gosto deles. Por vezes fazem asneiras, mas é natural na nossa idade. Conformo-me com a resposta que obtive e dirijo-me para outros pensamentos. Penso em tudo, desde o que se passa comigo até ao que se passa com o mundo, voltando por vezes aos amigos. Chegado à escola, sento-me à porta da sala, quieto. A ritmo de conta-gotas os meus amigos e os meus colegas vão chegando pouco a pouco, largando desde o mais frio bom dia a um aperto de mão animado. No meio do barulho provocado por centenas de alunos que por ali esperam pela pessoa que os irá leccionar durante as próximas horas, toca a campainha avisando todos que as aulas vão ter inicio. O professor aproxima-se, abre a porta e cada um se dirige ao seu lugar. Ao meu lado senta-se um rapaz chamado Viriato. Nós chamamos-lhe apenas Viri. Aparentemente ele não gostava muito do nome. Consigo compreender porquê, não é um nome muito normal e acredito que nos anos que teve História tenha ouvido uma boa dose de piadas por parte dos professores. Verdade seja dita que eu não tenho muito o direito de falar de nomes alheios, afinal, o meu nome é Maqui. Não sei porque é que os meus pais me deram este nome, nem nunca tive muita curiosidade em saber. Acho mais engraçado pensar que estavam sobre o efeito do álcool na altura que me registaram. Tem sempre mais piada. Seja como for, não me preocupa muito. Por mim, nem tinha nome. Ter nome ou não ter é me indiferente. Não sei explicar de uma forma lógica porque não me importa o nome, mas a verdade é que não me importa mesmo. Afinal, para ter uma conversa interessante com uma pessoa não preciso de saber o nome dela.
- Silêncio! – Gritou o professor.
É um homem alto, deve ter cerca de metro e noventa. Isso aliado ao seu aspecto imponente de quem vai ao ginásio todos os dias torna-o uma figura de respeito e por isso todos absorvem o seu berro e calam-se, engolindo em seco tudo o que tinham para dizer.
- Hoje não irá haver aulas. – disse o professor com um sorriso na cara.
Imediatamente toda a gente começou a falar baixo uns com os outros, instalando assim um burburinho dentro da sala. O professor berrou novamente. Um rapaz chamado António José, Tózé para os amigos, foi o primeiro a insurgir-se.
- Não vai haver aulas porquê? Quer dizer, é algo bom, mas fizeram-nos vir aqui para quê então? – Perguntou ele num misto de revolta e felicidade.
- Não vai haver aulas hoje porque, como sabem, hoje de noite vai haver uma chuva de estrelas. Portanto a aula que irão ter vai ser de noite. A escola planeou isto já há algum tempo e os vossos pais estão informados. O objectivo era ser uma surpresa.
Todos ficaram felizes. Uma chuva de estrelas é sempre um fenómeno sempre interessante de se observar e com equipamento indicado para tal, torna-se ainda mais interessante. Como costume há sempre que diz uma coisa do género «Estrelas? Isso é para meninas! Ainda por cima hoje dá o Benfica! Eu cá não venho!» achando que tem piada, corando depois de vergonha quando repara que ninguém se riu. Fomos informados das horas a que tínhamos de estar prontos pois era um veículo próprio dedicado para o dia de hoje que nos ia buscar a casa e saímos da sala. Quase que em uníssono os alunos saíram das salas e o barulho era imenso. «Vai ser espectacular!», «Vou adorar!», «Que seca!» eram as frases do momento. Eu não tinha nada a dizer, portanto ficava calado. Mesmo que não gostasse iria ter de lá estar, portanto convinha-me muito mais ser algo do meu agrado do que não o ser. Não era um direito, era uma obrigação. Se fosse um direito o mais provável era nem meter lá os pés. Preferiria ficar por casa e deitar-me no telhado a ver a chuva de estrelas, do que estar numa escola, com centenas de alunos a ver. Aborrecia-me. No entanto, conformei-me e segui em frente. Chegado a casa deitei-me no sofá. Não me apetecia fazer nada, portanto fiquei ali a olhar para o ar e acabei por adormecer.
Acordei às sete da tarde. Às oito era quando deveríamos estar despachados, portanto ainda tinha tempo. Levantei-me do sofá, murmurando insultos ao quão desconfortável era e à dor de pescoço que me tinha dado, fui à casa de banho e passei a cara por água. Enquanto limpava a água da cara aproveitei para passar a toalha pelo cabelo para lhe dar um jeito. Iria ficar despenteado na mesma, mas pelo menos ficava livre da minha consciência. “Pelo menos tentei penteá-lo!” poderia sempre responder-lhe. Peguei na mala, despedi-me e saí de casa. Fiquei algo preocupado pelo facto de a única resposta que ouvi ao meu adeus ter sido um fraco miar do meu gato, mas não perdi muito tempo a pensar nisso. Quando o autocarro chegou saiu de lá um homem fino, de óculos e com um ar de quem não gostava muito de estar ali. Perguntou-me se era eu o Maqui (esboçou um sorriso, que eu ignorei, quando leu o meu nome no papel), respondi que sim e entrei. Procurei por um lugar ao pé de alguém conhecido. Não demorei muito a encontrar. Sentei-me ao pé de uma rapariga chamada Maria. Ela é provavelmente a rapariga mais bonita da turma e talvez uma das mais bonitas da escola. No entanto, não é isso que mais me interessa nela. O facto de estar sempre com um sorriso na cara é o que mais me cativa e preocupa. Sinto sempre que há algo ali que não está certo, mas não sei o que. Naquele momento ecoou-me na cabeça aquela voz, gritando de forma ensurdecedora «Ela está em perigo!». Meti as mãos aos ouvidos, a voz começava a causar-me dores. Senti que por momentos os meus tímpanos iriam explodir e que alguém bastante sádico iria adorar esse resultado deste jogo doente.
- Estás bem Maqui? – Perguntou-me ela, colocando a mão no meu ombro.
- Sim, não é nada.
A voz parou. Parei de pensar no facto de ela estar ao meu lado com medo que a voz voltasse. Passado algum tempo ela voltou-me a perguntar se estava mesmo tudo bem, pergunta à qual respondi com um rápido sim, de forma a não ficar com a voz dela presa na minha cabeça.
Quando chegámos à escola olhei para o pequeno monte que fica ao lado desta. Não consegui evitar esboçar um sorriso. Juntei-me ao resto dos membros da minha turma e fui para perto do nosso professor. Após ele confirmar a nossa presença, eu afastei-me. Maria notou que eu me estava a afastar e agarrou-me pelo braço.
- Onde vais? Está escuro, podes perder-te!
- Não te preocupes, vou só fazer uma chamada.
Ela largou-me e eu afastei-me. Desta vez a voz não apareceu no meu pensamento, mas o meu pensamento chamou pela voz. Era mais forte que eu, não conseguia evitar pensar naquilo. Porque é que surgiu naquele momento? Ela é a Maria? Porquê? Enquanto pensava fui caminhando rumo ao monte. Nos meus primeiros anos naquela escola subi-o várias vezes com alguns amigos, portanto sabia os trilhos mais fáceis de cor. Não demorei muito a chegar à parte mais alta. Era um sítio perfeito para se ver as estrelas. A luz era pouca, o que permitia uma maior visibilidade e todo aquele ambiente sereno à volta tornava tudo mais mágico. As árvores enrolavam-se com o vento, como um par destinado a dançar junto para sempre. Por vezes saltavam algumas folhas, lembrando um pequeno pássaro que saía da asa da mãe, pronto para enfrentar o mundo. O mais provável era, se fosse ingénuo, acabar morto. O mesmo acontece às folhas. Se forem ingénuas e confiarem sempre no vento, irão acabar mortas.
Sentei-me e procurei na minha mala por uma garrafa de água que, quando encontrei, bebi toda de seguida. Toda aquela situação no autocarro tinha-me deixado a garganta seca e a desesperar pela maior quantidade de água possível. Deitei-me a olhar para o céu. Todas aquelas estrelas deixavam-me a pensar se haveria alguém, noutro lugar na mesma situação que eu: deitado, na relva, a olhar para as estrelas e a pensar nisto.
- Então estás aqui! – Gritou uma voz feminina, interrompendo o meu pensamento.
Levantei-me e olhei à minha volta procurando ver quem era. A voz soava-me familiar, mas não conseguia ver quem era.
- As pessoas estão a perguntar por ti, idiota!
- Maria…
- Olá! – Disse ela sorrindo e saindo de trás da árvore.
- O que é que estás aqui a fazer?
- Segui-te. Apeteceu-me. Fiquei curiosa para ver onde ias e vim atrás de ti.
Não respondi. Voltei a deitar-me e ficar a olhar para o céu. Ela aproximou-se e deitou-se ao meu lado. Não evitei que a minha mente fosse invadida por pensamentos sexuais. Estamos os dois juntos, sozinhos, num lugar vazio onde as probabilidades de aparecer alguém estão perto do zero e sou um rapaz.
- Isto aqui é realmente bonito!
Estava com um olhar visivelmente deslumbrado. Os seus olhos pareciam que brilhavam tanto como as estrelas.
- É bonito e assustador ao mesmo tempo.
- Assustador?
- Sim. Parece que a qualquer momento o céu se vai vergar e partir ao meio, incapaz de albergar tantas estrelas. Depois, o céu é enorme. Faz-me sentir pequeno. Com tanta estrela dentro dele, parece que alcançou milhares ou até milhões de sonhos e estas adornam-no como se medalhas fossem. Isso mete-me medo. Mete-me medo porque dentro de mim há um céu completamente escuro, sem uma única estrela. Faz-me pensar que nestes anos de vida, nunca alcancei nada. Nunca fiz nada que me fizesse achar que estou mais perto dos meus sonhos. Isso faz-me sentir miserável. Dá-me até vontade de morrer. Mas o facto de ser novo e ter um longo caminho a percorrer para os realizar faz-me ter coragem para viver. Depois, quando há a dita chuva de estrelas, parece que o céu está a gozar comigo. Como quem se gaba de ter tantas medalhas que pode dispensar algumas, atirando-as de forma arrogante pela janela de sua casa.
- Maqui…
- Desculpa, é capaz de ser algo estranho dizer isto. Não queria soar assustador.
Pela primeira vez desde que me lembro, olhei para ela e ela não estava com um sorriso plantado na cara. Não estava triste, mas não estava a sorrir. Estava com um rosto neutro, como se não tivesse nenhuma emoção. Percebi que estava mergulhada em pensamentos.
- Compreendo-te. Mas prefiro pensar antes que é um espectáculo bonito que a natureza nos oferece, em vez de ter essa visão obscura das coisas! – Disse ela, voltando a sorrir.
Não lhe respondi. Não foi por não querer, simplesmente não tinha nada para responder. Quando assim é, fico calado.
Ficámos ambos a observar o tal espectáculo natural. De vez em quando ela gritava «olha aquela, é tão bonita!» e eu respondia com um sorriso. Era realmente algo fenomenal. Parecia que estava alguém a pintar uma tela gigante e aquela chuva de estrelas representava o traço do pincel do artista, que pintava a sua obra-prima. Ao ver aquilo não conseguia pensar mais que o céu estava a gozar comigo, mas ficava sim agradecido por poder observar tal coisa.
Quando chegou ao fim, ela perguntou-me algo que sempre achei que me queriam perguntar mas que algo os impedia.
- Desde quando é que adquiriste essa visão das coisas? Desde quando é que ficaste assim?
- Assim como?
- Tão vazio. É como se não tivesses emoções. Se as tens, os teus olhos não as exteriorizam, impedindo que as outras pessoas as vejam. Nunca te vi chorar, mesmo no dia em que os teus pais tiveram um acidente de carro e quase os perdeste.
- É uma longa história.
- Se não queres contar, podes simplesmente dizer que não.
- Está bem, eu conto. Mas não me interrompas, por favor. Eu tinha uma irmã. Sim, tinha. Ela morreu. Para a minha irmã eu sempre quis passar a imagem de ser um muro que ela um dia teria de saltar. Por vezes era algo duro com ela, mas sabia que isso daria frutos um dia. No fundo acho que ela sabia que eu gostava muito dela e isso deixava-me descansado. Por vezes de noite, quando me levantava, encontrava-a sentada na cama a olhar para o vazio. É como se ela estivesse ali em corpo, mas não em alma. Quando ela tinha 4 anos, perguntou-me porque é que as pessoas viviam. Não lhe soube responder, disse-lhe que iria descobrir um dia por ela própria. Mas não é isso que importa agora. Quando eu tinha 8 anos, ela tinha 3. Os meus pais tinham-me comprado uma bola nova e eu tinha-a levado para a rua, para brincar com os meus amigos. Quando voltei, voltei sem ela. Um rapaz mais velho tirou-ma e fugiu com ela. Voltei para casa e sentei-me no canto do quarto a chorar compulsivamente. Não chorei porque fiquei sem a bola. Chorei porque tinha sido fraco, não tinha sido capaz de reagir. Fiquei com medo porque ele era maior, mais velho e mais forte que eu. Não tinha raiva dele, tinha raiva de mim, por ser fraco. Se eu queria que a minha irmã me visse como um muro que um dia teria de saltar, do que é que iria servir se eu fosse fraco? No meio das lágrimas ela entrou no quarto. Eu gritei com ela, disse-lhe para sair, mas ela aproximou-se de mim e deu-me uma chapada e chamou-me idiota. Dois anos depois ela morreu, nunca entendi bem porquê, nem preciso de entender. Mas essa memória não morreu. Prometi a mim mesmo que não ia chorar. Cada vez que tenho vontade de chorar rio-me, porque sei que se deitasse uma lágrima sequer ela me iria chamar idiota e essa imagem traz-me um sorriso.
Ela não disse nada. Ficou a olhar para mim. Achei que ela iria chorar, mas estava enganado. Ela sorriu para mim.
- Posso fazer-te uma pergunta? – Perguntei eu, enquanto nos levantávamos.
- Claro.
- És feliz?
Tudo parou. A rotação da terra, o sistema solar, o universo, as estrelas, os relógios, a evolução, tudo o que estava em movimento parou naquele momento. Ela olhou-me nos olhos durante alguns segundos e abraçou-me. No meu ombro, chorou compulsivamente, enquanto me apertava contra ela com toda a força dos sentimentos que reprimiu até aquele dia. Nunca senti algo assim antes. Toda a raiva, angústia, miséria, tristeza dela eu pude sentir. A força com que as unhas dela se cravaram em mim naquele momento deixou-me uma cicatriz que eu nunca irei esquecer.
- Obrigado – disse ela limpando as lágrimas do rosto – Acho que precisava disto.
Deixámos aquele sítio. Não trocámos uma única palavra durante o caminho. No fim, no momento da despedida, ela agradeceu-me novamente, deu-me um beijo na cara e foi-se embora. Naquela noite voltei a sonhar com aquele quarto iluminado. O espectro voltou a aparecer. Desta vez, estava mais composto e tinha um sorriso na cara. “Obrigado”. Foi o que ele me disse, antes de desaparecer.

Obrigado por terem lido,
Crow.

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Agora já é possível comentarem sem ser necessário ter conta.
Peço desculpa por possíveis erros na escrita. É a esta hora que me sinto mais à vontade para escrever e perante o sono com que me encontro, é complicado não dar erros. Faço questão de reler o que escrevo, mas há erros que podem escapar.