sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Reflexão intemporal do que é real e do que não é.

O rapaz fechou os olhos e quando os abriu estava numa praia. Julgou ter ultrapassado os limites do pequeno patético ser humano e atingido o patamar de uma divindade, tendo absoluto controlo daquilo que o rodeava, podendo alterar o ambiente a seu bel-prazer. "Porque não?", pensou para si. Mergulhou tão profundamente nessa sensação de poder que se instalara dentro de si, que demorou a reparar que não estava só no vasto areal. Sentiu-se como se tivessem invadido o seu território sagrado. Sentiu-se como um pequeno patético ser humano se sente quando alguém descobre um segredo íntimo que só ele (e as duas dezenas de pessoas com quem o partilhou ingenuamente) deveria saber. A fina areia branca perdia assim todo o seu encanto e a suave brisa maternal começava a repugna-lo. A pessoa que se encontrava mais perto era um homem barbudo, meio calvo e que devia estar nos seus cinquenta anos. Aproximou-se do homem e perguntou-lhe o que estava ali a fazer e como tinha chegado ali. Perguntou mais do que uma vez, todas sem sucesso. O homem continuava a olhar para o livro, como se desligado do mundo. Como se não estivesse ali realmente. O rapaz assumiu que era apenas um homem mal educado e aproximou-se de um senhor mais jovem que também estava ali perto. O homem aparentava ser pai de família. Não sei bem explicar porquê mas tinha todo o ar disso. Se calhar era porque de minuto a minuto tirava os olhos do jornal para observar duas crianças que construíam castelos de areia. Ou então estava para casar e a noiva estava grávida. Ou era infértil e desejava ter filhos. Há um leque de opções bastante grandes, mas a de que ele é o pai das crianças ajuda a tornar a coisa menos negra. Voltou a fazer as mesmas perguntas que fez ao homem barbudo. As mesmas perguntas, as mesmas respostas. O homem continuou a ler o jornal e, de minuto a minuto, olhava para as crianças. Era como uma cassete estragada. Ninguém gosta de cassetes estragadas. O rapaz começava a ficar seriamente enervado. Aproximou-se das duas crianças e pontapeou violentamente os castelos. Estas nem pestanejaram. Rindo e brincando continuaram o ritmo frenético a que os construíam. Quando o rapaz olhou para o local onde estariam os castelos que ele destruiu, ficou ainda mais nervoso. Era como se ele nunca tivesse feito nada. Os castelos estavam ali, pequenos mas firmes e imponentes. Ficou com a ideia que se riam dele. Ficou com a ideia de que também o vento se ria dele. Cada vez que o rapaz voltava a pontapear o castelo, o vento soprava com força e, com uma velocidade impressionante, colocava os castelos em pé novamente. Desejou que o vento desaparecesse. "Afinal, eu sou o Deus deste sítio!" disse. Desejou com todas as suas forças que o vento desaparecesse e nunca mais voltasse, que aquele fosse um mundo sem vento. Quanto mais desejava, mais o vento lhe batia na cara. Toda a sensação de poder que tinha tido antes esfumou-se. Cada vez ficava mais nervoso e começou a culpar as pessoas. A culpa era delas, afinal, se elas não tivessem ali, nada tinha acontecido. Desejou com todas as suas forças que elas desaparecessem. Desta vez o seu desejo foi realizado. Tal e qual como a sensação de poder se esfumara, o mesmo aconteceu com as pessoas. O vento soprou forte e, como se de areia se tratassem, as pessoas foram levadas. Nenhuma delas mostrou um único sinal de sofrimento, agonia ou sequer uma reacção. Até desaparecerem completamente continuaram os seus movimentos rotineiros, como se de máquinas se tratassem. O rapaz sentiu-se mais calmo. Estava, finalmente, sozinho no seu Éden. Ficou ali durante dias a observar o mar e o horizonte. Reparou que nada tinha mudado. As ondas ondulavam de forma constante, sempre à mesma velocidade, com a mesma altura. O sol não se tinha posto, nem sequer se tinha movido da sua posição. Desde que as pessoas tinham desaparecido que aquele mundo tinha parado de funcionar. "Que problemático.", suspirou o rapaz.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Zero

(...)
"Vai tudo ficar bem.", foram exactamente estas as ultimas palavras que ela lhe disse. O olhar dela, enfeitado pela chuva torrencial que o seu olhar nublado fazia cair, era vazio. Ele conseguia ver isso, mas acreditou naquelas palavras. «Porque é que ela mentiu?» pensou ele para si próprio, enquanto tirava a caixa de fósforos da mochila. A verdade é que nada ficou bem. Dia após dia ele viu-a a piorar. Viu a neblina dos olhos dela tornar-se cada vez mais densa, acabando por esconder toda a vida que eles tinham. O que lhe doía mais não era o facto de ela ter partido. Era o facto de ela ter mentido. Ela não tinha necessidade.
O rapaz pegou na caixa de fósforos, aproximou-se de um pequeno trilho líquido que estava no chão daquela casa e acendeu-o. «Adeus.» sussurrou baixo, enquanto observava a casa arder. Tinha um pedaço de papel na mão que tinha escrito em si o numero um. Pegou numa caneta que tinha no bolso, riscou o um e escreveu um zero por cima. Atirou o papel para as chamas e quando este terminou de arder virou costas e seguiu o vento. Não tinha para onde ir de qualquer das formas.
(...)
Sentado na esplanada de um café lembrou-se de um pequeno barco que tinha. Fitou o céu limpo durante alguns segundos, respirou fundo e levantou-se. Dirigiu-se ao balcão do café e perguntou se a senhora lhe podia dispensar um papel e uma caneta. Esta acedeu ao seu pedido e ele agradeceu. No papel podia ler-se numa letra bastante bonita um solene Adeus.
(...)
Já no barco, preparado para partir para alto mar reparou numa pequena menina que olhava fixamente para ele, agarrada ao seu urso de peluche. Atirou-lhe um sorriso mas ela não respondeu de volta.
- Onde é que o senhor vai? - perguntou ela atrevidamente e com um ar sério desadequado a uma criança.
- Eu? Eu vou viajar. Vou para alto mar.
- Vai partir para não voltar?
- Que raio de pergunta!
- Sabe senhor, eu era pequena quando me sentei neste mesmo sítio e vi o meu bisavô partir para alto mar. Ele disse o mesmo que você. Tinha os mesmos olhos que você. Ele não voltou. A situação repetiu-se com o meu avô e com o meu pai também.
- Não faço intenções de voltar, é verdade.
- Porquê senhor? Não tem gente importante para si? Não acha que elas iram ficar tristes? Eu fiquei triste! - disse a criança gritando, com os seus olhos mostrando uma mistura de raiva e tristeza.
- Pessoas importantes? - disse o homem enquanto se ria. - Não. Zero. Já as perdi todas.
A criança não respondeu. O homem partiu para alto mar. Nunca mais voltou.

sábado, 21 de maio de 2011

Fugitivo


Com a mala às costas fez questão de bater a porta com força. Queria ir-se embora mas não queria que a sua saída não fosse notada. Para si próprio sussurrava que tal era porque queria que se sentissem mal por ele ter partido, mas ele sabia que não era bem assim. Queria que procurassem por ele. Queria que tivessem saudades dele. Queria, por uma vez na vida, sentir-se desejado naquele lar. Queria que pensassem nele. Essa seria a única forma de ele dizer que aquela era a sua casa. Afinal, o nosso lar é um lugar onde alguém pensa em nós. Foi quando o eco da porta parou de ecoar pelo prédio que percebeu o que estava a fazer. Foi invadido por uma sensação de liberdade. Para onde iria? Era ele que decidia. Podia ir para onde quisesse. No entanto essa sensação de liberdade trazia acompanhada uma sensação de solidão. Se era completamente livre era porque estava sozinho. Se houvesse alguém, nem que fosse apenas e só uma pessoa, como, por exemplo, a sua irmã, ele teria sempre a preocupação que o amarraria a ela. Neste caso não. Era completamente livre. Estava sozinho. Desceu lentamente as escadas. Apesar de ser um primeiro andar chegou à porta que ligava o prédio à rua como se tivesse acabado de descer um arranha-céus. Quando saiu à rua encostou-se uma parede e olhou para as janelas da sua casa. Queria ver se alguma luz se acendia. Tinha esperança que, naquele momento, encontraria o sinal que tanto queria. Sem sucesso. As luzes mantiveram-se da cor da noite, mortas. Começou a sentir-se frio, por dentro e por fora. A ligeira brisa gelada que se fazia sentir naquela noite de Verão trespassava-lhe a pele e a carne como afiadas navalhas num tufão. Ao olhar para o céu reparou que a lua cheia se fazia mostrar no meio das nuvens. Enquanto a contemplava esta escondeu-se por detrás das mesmas, como se ele não fosse digno da sua beleza. Suspirou, pegou na alça da mala e caminhou. Para onde ia, não sabia. Sabia apenas que tinha de ir para algum lado. Optou por não se afastar muito e sentar-se à porta de um prédio a atirar para o chão uns dados que tinha guardado na mala. Queria ver se tinha sorte. Quantas vezes lhe calharia o seis? No que toca a dados o seis é o maior número portanto é sinal de vitória. Foi o que fez aparecerem os primeiros raios de sol. Foi aí que acordou daquele transe em que parecia preso com os dados. Perdeu a conta de quantas vezes os tinha atirado, mas memorizou o facto de apenas por treze vezes ter saído o número seis. Tinha a sua piada o facto de, em tantas vezes que atirou os dados, ter saído treze vezes o número seis. Treze. O número do azar. Não que ele acreditasse em sorte ou azar, mas era caricato.
Pela posição do sol no céu deviam ser quase sete horas da manhã. As pessoas começavam a sair de casa para ir para o trabalho. Quanto mais olhava mais se questionava sobre a felicidade daquelas pessoas. Não tinha nenhuma dúvida que se a alguma delas fosse dada a chance de não trabalhar e, ainda assim, receber dinheiro que elas optariam por essa mesma. Afinal, elas próprias arranjam subterfúgios para o fazer. Largou rapidamente esse assunto que lhe dava asco, pegou na mochila e continuou a andar sem destino.
Num infantário as crianças saltavam de um lado para o outro. As meninas estavam de volta de uma casa de plástico, maior que elas, a brincar com bonecas ou a gritar a alto e bom som que vendiam gelados. Os rapazes jogavam à bola com uma bola de plástico que já tinha perdido os desenhos de origem. Quando a bola veio parar cá fora um rapaz aproximou-se da rede que separava o infantário do exterior e pediu «senhor, podia dar-me a minha bola?». Pegou na bola e devolveu ao rapaz, que lhe devolveu um sorriso rasgado. Senhor. O rapaz chamou-lhe senhor mas ele não tinha minimamente ar disso. Pelo menos ele sempre associara um senhor um homem de fato e gravata, um empresário. Ele trazia vestido umas calças de ganga perfeitamente vulgares, uma t-shirt azul com uma camisa branca por cima. Decidiu que todos os dias passaria ali. Trazia-lhe memórias de quando era criança e não compreendia as coisas. Queria voltar a ser assim. Ingénuo. Assim seria enganado e nem sequer iria perceber. Agora era enganado, percebia e não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. A sensação de impotência era enorme. Eram cicatrizes que tatuavam o corpo de forma permanente. O sol punha-se e os familiares começavam a vir buscar as crianças. Lembrou-se de quando o pai se esqueceu de o ir buscar e ele ficou sozinho, sentado à berma da estrada durante quatro horas. Na altura teve medo, não compreendia o que estava a acontecer. E se aqueles monstros que ele via na televisão, nos seus desenhos animados favoritos, existiam muito e tinham atacado os seus pais? Ele ia ficar sozinho! Riu-se dos seus pensamentos ingénuos da altura. Quando voltou a acordar da viagem pelo passado reparou que havia um rapaz que estava sentado sozinho na berma de estrada. A velocidade da sua respiração quadruplicou, como se ele estivesse a ver as suas memórias mais dolorosas num espelho à sua frente. A única diferença é que o rapaz tinha um saco com doces na mão. Ele, na altura, tinha uma bola.
- Está tudo bem? - perguntou, aproximando-se do rapaz.
- Ela diz sempre para eu não falar com estranhos! - respondeu de forma pertinente o pequeno rapaz.
- Não faz mal, não precisas de falar comigo. Vou só ficar aqui para não teres medo de ficar sozinho ou que te aconteça alguma coisa.
Era aquela a verdade. Não tinha a mínima intenção de falar com o rapaz, simplesmente queria fazer por ele o que ninguém fez na sua altura. Durante quase uma hora ficaram ali os dois em silêncio olhando à sua volta. Do outro lado uma rapariga chamou pelo pequeno rapaz. Este levantou-se com um sorriso gigantesco na cara e saltou para cima dela. Sentiu-se aliviado. O rapaz ia para casa, estava tudo bem.
A noite aproximava-se e precisava de um sítio algo seguro onde passar a noite. Optou por passar a noite perto do mar, numa zona onde vários pescadores passavam a noite a trabalhar. O facto de estar ali gente oferecia-lhe alguma sensação de segurança para poder descansar um bocado. Encostou-se contra a parede, sentou-se, agarrou a mala no meio dos braços e cerrou os olhos. Não demorou muito a adormecer.
Ao acordar optou por dar um mergulho. Estava perto do mar, podia tirar proveito disso. Não era grande nadador e praia nunca tinha sido o seu sítio favorito mas o mar era algo que o fascinava. Aquela imensidão de água, aparentemente tão simples, escondia tanto. Ambicionamos sempre sair do nosso planeta quando nem o conhecemos. Vestiu-se e tomou o pequeno almoço num café perto do tal infantário. No fim optou por sentar-se no mesmo banco do outro dia.
- Desculpa? - disse uma rapariga aproximando-se e sentado-se também no banco.
- Sim?
- Obrigado por teres ficado com ele ontem.
- De nada, acho eu. - respondeu de forma fria, reconhecendo a rapariga do dia anterior. - Ainda assim, devias ter mais cuidado.
- Tens razão mas não tinha como vir mais cedo.
- Então devias ter pedido a outra pessoa que o viesse buscar.
- Não há outra pessoa.
A conversa morreu ali. Não quis perguntar por uma explicação porque não quis pisar territórios da vida de outrem aos quais não pertencia. Durante cinco minutos ficaram em silêncio.
- Os nossos pais morreram num acidente de viação. O meu pai bebia bastante e nesse dia decidiu conduzir. A minha mãe tentou impedi-lo e foi com ele para que corresse tudo bem. Morreram os dois. Choque frontal com um camião. Os restantes familiares nunca quiseram saber, só se aproximaram por dinheiro. Como tubarões quando reagem ao sangue. Não tive muito tempo para fazer amigos, portanto também não tenho nenhuns com quem contar. Somos só nós dois. Pelo menos no meu caso.
Remeteu-se ao silêncio novamente. Não sabia o que dizer e, assim sendo, o melhor era mesmo não dizer nada.
O tempo passou e era hora de almoço. Ela ainda estava ali sentada a seu lado, ambos em silêncio com os olhos focados em algo que não aquele lugar. Essa foco foi quebrado pelo barulho do seu estômago, que fez questão de fazer o mundo saber que estava com fome.
- Queres vir almoçar connosco? - disse ela rindo-se. - Seria uma forma de te pagar o que fizeste ontem.
Antes que ele pudesse responder que não o pequeno rapaz saiu a correr do infantário.
- Marta! - gritou com alegria, saltando para cima dela.
O pequeno rapaz olhou para ele e esboçou um sorriso enorme, tirou da mala um saco com algumas guloseimas e estendeu-lhe a mão com algumas.
- Toma! - disse ele. - Obrigado!
A rapariga riu-se e disse-lhe para ele aceitar. Hesitou mas decidiu aceitar, tal como acabou por aceitar o convite. Não tinha coragem de dizer que não.
Foram almoçar a um restaurante com um aspecto caseiro e acolhedor.
- Então, tu estudas? - perguntou ela, de forma a fazer conversa enquanto esperavam pela refeição.
- Não.
- Trabalhas?
- Também não. - respondeu novamente com a mesma frieza.
- Então o que fazes? Tens a minha idade portanto tens essas duas opções. A não ser que sejas milionário e tenhas decidido abandonar tudo para correr o mundo.
- Pode-se dizer que estás metade certa, sim. Saí de casa.
- Porquê?
- Porque a minha casa não era a minha casa. A nossa casa é onde alguém pensa em nós. Naquela casa ninguém pensa em mim. Não sou mais que um fardo.
- Sei o que é isso...
Vendo a expressão triste no rosto da irmã o pequeno rapaz interveio na conversa dizendo um disparate que para ele fazia todo o sentido. Ele não entendeu se o rapaz entendeu e fez de propósito ou se foi apenas o seu instinto de irmão a funcionar. O seu pensamento foi interrompido pelo empregado que trazia as refeições. Fora do restaurante a rapariga tirou um envelope do bolso e passou-lhe para a mão. Ele abriu e tirou de lá de dentro um envelope com um bilhete de avião e uma carta de emprego.
- Era a empresa do meu avô. Ainda tenho direitos lá, sabes. Tens aí o bilhete de avião para Madrid. Quando lá fores levas essa carta à empresa e podes ter a certeza que te dão emprego e te arranjam um alojamento temporário. Não é nada de especial, mas é o suficiente se queres refazer a tua vida. Agora tens uma opção. Podes voltar para casa que não chamas de casa, ou partir para uma vida sozinho. Boa sorte.
A rapariga virou costas, deu a mão ao pequeno rapaz e foi se embora. Ele ficou a olhar para o bilhete de avião. Porquê? Porque é que ela lhe tinha dado aquilo. Era um agradecimento? Sentiu-se identificada com ele? Porquê tanta compaixão para com um estranho? Não hesitou. Sabia que aquela era a única forma de fugir. Não havia forma de resolver aquele problema, então optou por fugir. Sabia que isso o assombraria para sempre, mas foi a escolha que fez e ia lidar com ela.
Já em Madrid optou por enviar uma carta de agradecimento à rapariga. Durante anos trocaram cartas. Ao inicio eram cartas irregulares falando apenas de como estavam as coisas a correr na emprega mas rapidamente se tornaram cartas fúteis sobre o dia a dia de ambos. Coisas como "hoje começou a chover bastante, optei por comprar um guarda-chuva para me prevenir" pautavam pela regularidade. Por vezes discutiam temas que surgiam nas notícias de ambos os países e chegava a por vezes parecer que se irritavam. Mas não. Fazia parte daquela dança que ambos estavam a dançar. Ele começava a pensar nela regularmente. Esses pensamentos sobre aquela rapariga apagavam lentamente a cicatriz que tinha aceitado de bom grado no dia que partiu. Mas não era só essa cicatriz que aqueles pensamentos saravam, eram todas. Pouco a pouco começava a entender aqueles sorrisos dos seus colegas de trabalho quando viam a esposa no final do trabalho. Era como se começassem a fazer sentido. Era como se ele os compreendesse agora. Mas todo esse castelo de cartas desmoronou num simples pedaço de papel. «Vou casar-me.». Leu três vezes a carta para ter a certeza do que estava a ler. Não derramou uma única lágrima. Levantou-se, guardou a carta na caixa de sapatos onde guardou todas as outras, pegou na sua velha mochila e colocou toda a roupa lá dentro. No dia seguinte demitiu-se do emprego e apanhou um comboio de forma aleatória. Fugiu, novamente. Fugiu, como fazia sempre. Mas sabia que nunca se ia esquecer.


segunda-feira, 18 de abril de 2011

Entre a espada e a parede.

Ok, é o seguinte, o que se vem a seguir deve ser do mais bizarro que já escrevi. Simplesmente comecei a desenvolver a história na cabeça depois de ler algo no jornal, originalmente é muito maior mas não me apeteceu estender demasiado, portanto ficou só assim.



O cenário era algo surreal. Se ele não o tivesse visto com os seus próprios olhos, pensaria que estava a viver um qualquer filme de Hollywood, daqueles filmes que passam nas madrugadas dos canais generalistas. A escola estava envolvida num manto silencioso que só adensava a atmosfera de filme de terror. O jovem polícia recordou os seus próprios tempos do secundário e dos jogos que jogou, enquanto avançava, de arma em punho, lembrava-se que esta era a parte em que abria uma porta e algo bizarro, nunca antes visto aparecia à sua frente. Foi o que aconteceu. Na sala, onde antes um jovem motivado por razões desconhecidas se decidiu fechar e fazer dos alunos presentes reféns, o silêncio era fustigado por um gotejar do sangue a quem aquele jovem decidiu roubar a vida. E pelo som de uma respiração. Uma respiração violenta, como a de alguém que lutava contra os seus próprios princípios. Pouco a pouco, fazendo sinal aos seus colegas, o jovem polícia avançou. Não sabia o que esperar. Será que, como no filme de terror, do canto da sala, por trás da secretária estaria algo irreal à sua espera? Ficou petrificado com o que viu. Um rapaz, provavelmente com os seus 18 anos, segurava na arma que pertencia ao tal jovem que, por razões desconhecidas, tinha decidido cometer aquela atrocidade. À sua frente estava o corpo do tal jovem. Era notório que tinha sido baleado duas vezes no estômago e uma no peito. Provavelmente não teria sofrido muito e teria tido morte imediata, mas isso não lhe competia ele julgar. Ao aperceber-se da presença dos polícias o rapaz pousou a arma no chão e levantou-se, sem pestanejar.
- O que se passou? - perguntou o jovem policia, já na esquadra.
- Entre a espada e a parede. Foi nessa situação que ele me meteu. Então eu passei por ele. Sabe, eu conhecia. A ele, digo. Não sei se você se deu ao trabalho de investigar, mas eu poupo-lhe o trabalho. Era meu meio irmão. Somos filhos da mesma mãe mas de pais diferentes. Eu sou mais novo do que ele. Nasci depois. Quando eu nasci, a minha mãe morreu. Ela teve de escolher: se eu nascesse, ela morria. Podiam ter feito a coisa ao contrário. Mas não. Ela preferiu morrer. Desde esse dia, ele nunca me perdoou. Nunca fomos muito amigos. Devemos ser os meios irmãos mais impessoais de sempre. É como se não pertencêssemos ao mesmo mundo. Eu sempre soube que ele me odiava. Sempre. No entanto, sempre sorri para ele. Tinha esperança que, um dia, as coisas mudassem. Um dia, enquanto ainda éramos novos, de noite, ele tentou matar-me. Tentou asfixiar-me. O pai dele viu tudo e expulsou-o de casa. Lembro-me bem ainda hoje da enorme quantidade de vezes que ele gritou "ele nem sequer é teu filho, o teu filho sou eu!". Ele começou a tomar drogas, tornou-se mais uma sombra. Meteu-se com más companhias, fez assaltos. Hoje, ele decidiu por fim à sua vida. Entrou pela escola e disse-me que hoje morria. E eu morria também. Aquelas pessoas que você viu mortas, tudo começou porque tentaram impedi-lo. Quando ele disparou sobre uma, ganhou gosto à coisa, sabe. Não parou. Disse que queria que eu visse todos os meus amigos a morrerem, sem ser capaz de fazer nada. Nunca me senti tão fraco na minha vida e, quando dei por mim, chorava compulsivamente. Até que ele chegou perto de mim e eu fiquei encostado à parede. Durante a minha vida, tudo o que fiz foi chorar. Quando jogava futebol e caia, eu chorava. Quando tirava uma má nota, eu chorava. Quando o meu cão morreu, eu chorei. Quando fui assaltado, eu chorei. Foi quando, sem saber como, lhe consegui tirar a arma e disparei. Fechei os olhos e disparei. Enquanto disparava pedi a mim próprio para, por favor, o matar. Desejei mata-lo. Matei-o e fi-lo porque quis. Não me arrependo. Se tenho algum momento da minha vida em que tenho de me arrepender, foi o momento em que nasci, visto que foi o momento que tudo isto nasceu também. Fui eu que lhe estraguei a vida, portanto parece que o destino queria que fosse também eu a por-lhe um termo. - relatou o jovem sem pestanejar.
O jovem polícia não respondeu. Estava demasiado chocado pelo que tinha acabado de ouvir. Levantou-se e encaminhou o rapaz para a sua cela. Iria ser julgado na manhã seguinte. Afinal, tinha morto uma pessoa.
Durante a noite o jovem policia aproximou-se da cela do rapaz e abriu-a.
- Vai te embora. - disse.
- Porquê? - perguntou o rapaz, sem sabendo como reagir perante aquela situação.
- Se não te fores embora, irás acabar preso. Eu sou relativamente novo aqui, mas em todos os outros sítios onde trabalhei já vi casos semelhantes. Fico surpreendido como coisas destas ainda continuam a acontecer. Nunca fiz nada quanto a isso. Todos acabaram por ir presos, a meus olhos, de forma injusta. Eu nunca fiz nada. Hoje, lembrei-me do quão fraco me senti em todos os momentos e, sinceramente, não quero voltar a ter essa sensação. Não é o trabalho de um polícia fazer justiça? Então que seja. És novo. Tens de ter esperança e acreditar em ti. Se não acreditares em ti, acredita em mim, alguém que acredita em ti.
O rapaz esboçou um sorriso e saiu.
O polícia foi preso pelo seu acto e suspenso dos seus deveres, acabando por mais tarde se demitir. Afinal, não faria sentido ser polícia, se não podia fazer justiça, certo?

quarta-feira, 6 de abril de 2011

A metáfora que nos une

Não tenho escrito nada de especial, estou à espera do resultado de algo que, para mim, é ligeiramente importante, portanto não me consigo sequer concentrar. No entanto, saiu isto.

A metáfora que nos une
É a mesma que nos separa
Tornando aquela chuva
Numa proeza rara
Equilibrando o calor e o frio
Devolvendo a matéria ao espaço vazio
Mas é uma metáfora incessante
Que exige pedaços de nós
Consumindo-nos, pouco a pouco
Sem parar
Até não haver por onde pegar
Até só nos restarem os olhos
Para podermos observar a nossa miséria
E nós iremos olhar
E iremos pensar
"Valeu a pena".

quarta-feira, 9 de março de 2011

Onde estás?


Onde estás?
No que estás a pensar?
Onde quer que vás
Serás que pensas em mim,
nos teus amigos,
mesmo que seja pouco?
Já atingiste os teus objectivos...
Então porque não voltaste?
Ainda me lembro quando me perguntaste
Porque me preocupava tanto.
Lembras-te do que respondi?
Quando vamos crescendo, começamos a compreender
O que vai no coração das pessoas
Hoje já somos os dois crescidos.
Naquele dia, enquanto fugíamos da chuva,
como dois estranhos anónimos
dois completos antónimos
Conseguiste ver? O meu coração.
Eu não consegui ver o teu.
Porquê?
Abdicaste do teu coração, ao longo do caminho?
Será que viste o meu, o quanto eu me senti sozinho?
Eu preocupo-me,
Sou teu amigo.
Se alguém te magoar, eu vou querer vingança.
Se alguém me magoar, os meus amigos também se vão querer vingar.
Será um ciclo vicioso, percebes?
Não somos mais crianças,
Por isso percebemos essas coisas.
Será que esse fogo te consumiu da cabeça aos pés?
Eu vou continuar a procurar mas...
Sinceramente...
Começo a perder a visão de quem tu és...

quarta-feira, 2 de março de 2011

Deserto

Não é estranho
Chover num deserto?
É como se a morte
Fosse um dado permanente e certo.
Até no deserto,
se pode erguer uma utopia
Onde a lua ilumina a noite
E chove durante todo o dia.
Durante a noite,
as estrelas dançam em alegria
A escutar a sinfonia,
tocada pelo vento.

Do nada nasceu tudo
É o que passa pela cabeça do miúdo
Deitado no topo de um edifício
Quem te viu e quem te vê
Diz ele para o deserto
Ao transformar o nada em tudo,
Ele sentiu-se, finalmente, completo.



« Cria. Imagina. Inventa. Usa a parte colorida da massa cinzenta. »

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Um céu distante

A cidade ardia à sua frente. Ele, agarrando o urso de peluche, olhava atentamente sem esboçar uma única emoção. Os pássaros voavam em bando, apressados em fugir, em contraste com as pessoas. Estas lutavam cada uma por si. Era a lei do mais forte. Na verdade, era apenas uma lei de quem conseguia sobreviver mais um segundo. Todas acabavam por morrer. Os seus gritos, esses sim, tornavam-as imortais na mente do rapaz, gritos esses que lhe iam ficando cicatrizados na mente. Durante horas observou aquele cenário, sem reagir, sem pestanejar. No fim, quando o tempo voltou a fluir de forma regular, só restavam cinzas. Da cidade apenas saiam militares. Um deles abordou-o.
- Não podes ficar aqui. - disse de forma autoritária.
- Tenho de ficar. - respondeu o rapaz num tom sereno. O militar agarrou o rapaz com o objectivo de forçá-lo a sair daquele lugar mas o rapaz usou os seus instintos mais animais para se soltar.
- Porque é que insistes em ficar aqui? Já não há nada aqui. Só cinzas. - disse o militar, apelando à consciência da criança.
- Eu tenho oito anos. Desde o primeiro dia que me lembro de ter feito o meu primeiro pensamento que desejei sair daquela cidade. Desejei que ela desaparecesse do mapa. Assim, eu poderia ir para outro sítio. Detestava-a com todas as minhas forças. Hoje, ela ardeu. Já reparou senhor militar?
- Reparei? No que?
- Na cidade. Ela ardeu, mas ainda ali está. Os seus contornos são notórios. Consigo vê-la. É como se estivesse a gozar comigo. Ardeu e com ela levou toda a gente que lá vivia, menos eu. Como se fosse um jogo doentio no qual me deixou escapar para gozar comigo. As cinzas continuam lá. As pessoas continuam lá. Ela ainda existe. Sem vida, mas existe.
- Isso é muito bonito, mas esta zona tem de ser evacuada. Vamos.
- Não posso. Tenho de esperar por ela. Ela prometeu que vinha ter comigo. Ela disse para eu correr, correr sempre em frente, não parar e não olhar para trás. Se eu o fizesse, ela prometeu que estaria do outro lado à minha espera e seriamos amigos durante muito tempo. Quando eu aqui cheguei ela não estava. Percebi que ela apenas queria que eu corresse. No entanto, ela prometeu. Porque é que ela haveria de me mentir? Ela acreditava num sítio chamado paraíso. Ou pelos menos queria acreditar. Dizia-me que era para onde as pessoas iam quando morriam. Porque é que ela me diria para fugir e morreria sozinha? Eu nunca seria feliz assim. Nem ela. Tenho a certeza. Ou morreríamos os dois ou viveríamos os dois. Não há outra opção. É por isso que eu tenho de ficar aqui e esperar por ela. Se ela aparecer e eu não estiver aqui ela vai achar que eu olhei para trás e morri. Ela sabe que o mesmo se aplica a mim. Se ela não aparecer eu vou achar que ela morreu e não cumpriu a promessa que fez. Em condições normais eu deixaria de gostar dela. Não gosto de pessoas mentirosas. Mas ela é minha amiga. Não é suposto as coisas serem normais. Certo senhor militar? - perguntou o rapaz esboçando um sorriso. O sorriso mais ingénuo que aquele militar havia visto na vida.
- Faz o que quiseres.
O militar virou costas e foi-se embora. Desistiu perante a a vontade inamovível da criança. Ela, tão nova, tão frágil, tão fraca, ele, um militar com anos de treino, ginásio e foi ele que saiu derrotado. Durante um segundo sentiu-se fraco. Não tinha sido capaz de salvar aquela criança. Mas ele no fundo sabia que faria o mesmo. Ele esperaria. Esperaria para sempre.
- Quantos sobreviventes? - perguntou uma voz pelo intercomunicador.
O militar hesitou durante um bocado e olhou para o rapaz. Os pássaros de penas pretas voltavam pouco a pouco à única árvore que sobreviveu ao incêndio. Um cão vadio sentara-se ao lado do rapaz.
- Nenhum, comandante. Nenhum.

Do you know? The speed at which cherry blossoms fall... 5 centimeters per second. At what speed must I live to be able to see you again?

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Mil Metros de Altitude

Não tive tempo de reler para ver se tinha erros, portanto peço desculpa caso existam. Espero que gostem.



Era Primavera. Finalmente o Inverno tinha adormecido, permitindo a quem dele se abrigou acordar. As árvores voltavam a vestir-se, alguns animais, como o esquilo, davam ares da sua graça e a neve derretia. Fora isso era um dia como todos os outros, uma rotina para cumprir e nada mais, sendo o momento de chegar a casa o menos aguardado do dia. Quando o fazia sentia-se sozinho. Os pais trabalhavam até ao momento em que o sol se punha e ele acabava sempre por ficar sozinho naquela casa enorme e ficar ali deprimia-o. Geralmente acabava por ir a casa deixar apenas os livros da escola e ia para a cidade fazer algo. Qualquer coisa era melhor do que ficar sentado naquela casa vazia. Ficar num jardim a olhar para o céu, passar pela livraria e ver quanto tempo demorava até ao dono, já com alguma idade, dizer que aquilo não era uma biblioteca e que se ele queria ler o livro teria de o comprar, ver as lojas ou simplesmente andar. Mas naquele dia nem isso lhe apetecia. Estava farto de ver as mesmas nuvens, o dono da livraria já tinha desistido de lhe dizer que aquilo não era uma biblioteca e andar em ruas apinhadas de gente, numa verdadeira competição de quem se consegue esquivar mais rapidamente, não era propriamente o seu desporto favorito.
A norte da cidade havia uma montanha. Quando olhava para lá era invadido por memórias de quando os pais o levavam lá a passear. Era um sitio lindo e calmo. Lembra-se particularmente de quando o pai lhe disse que se há guerras no mundo é porque as pessoas nunca viram aquele lugar, que se mesmo depois de o ver ainda fossem capazes de continuar ou criar uma nova guerra era porque o mundo estava mesmo condenado. Na altura não entendeu bem o que aquilo queria dizer, era uma criança, portanto limitou-se a responder com um sorriso. No entanto, nunca se esqueceu daquela frase. Passou por casa para ir buscar a bicicleta e pedalou até à montanha. Uma viagem de quinze minutos, mais sessenta para chegar até ao ponto mais alto. Encostou a cansada bicicleta a uma árvore e deitou-se na relva. Deu por si a observar as nuvens e a associa-las a animais. Era como se ali as nuvens fossem diferentes das vistas da cidade. Aquelas pareciam genuínas. As da cidade pareciam forjadas por uma qualquer fábrica. Pareciam tristes. Quando se fartou de observar as nuvens sentou-se e ficou a olhar para o horizonte. Dali sentia que podia ver tudo. A cidade, uma verdadeira metrópole, parecia uma colónia de formigas. Pessoas cheias de dinheiro, fama e poder dali nem eram visíveis. Ficou a pensar nisso. Até onde é que a fama delas chegava? Se não as conseguia ver dali devia ser porque não eram assim tão grandes. No encadeamento desse pensamento lembrou-se que as pessoas quando se referem a montanhas é para as utilizar como metáfora para referir problemas ou dificuldades.
- Porquê? Uma montanha é um sítio tão calmo. Não incomoda ninguém. As pessoas têm assim tanta necessidade de tocar no que está do outro lado? Não lhes chega poderem ver o que lá está e saciarem assim a sua curiosidade? - pensou para si. Lembrou-se então do que estava a pensar anteriormente. Concluiu então que as montanhas eram metáfora para problema ou dificuldade porque as pessoas se sentiam pequenas perante elas. Sentiam-se ameaçadas. Todo aquele poder social e monetário que tinham era ridicularizado perante a imponência de uma montanha. Foi isso que concluiu e foi nisso que passou a acreditar. Passou a gostar ainda mais daquela montanha.
Tornou-se parte da rotina ir à montanha. Passou a ter curiosidade pela montanha que ficava em frente àquela em que ele costumava estar, dividida por um vale com um enorme e furioso rio. Pareciam espelho uma da outra. Todos os dias se questionava se, como ele, alguém estaria do outro lado, deitado na relva, a olhar para o ar. Deu por si todos os dias sentado perto da mesma árvore a olhar para a outra montanha. Pedia com todas as forças que do outro lado estivesse alguém igual a ele. Alguém que lhe fizesse companhia. No entanto, nada acontecia. Continuou a ir para a montanha todos os dias e acabou por esquecer a ideia de que do outro lado haveria alguém... até ao dia que o vento trouxe um olá. Uma voz feminina ecoou pela montanha fora. Olhou em sua volta procurando de onde vinha aquele olá, levantando-se de forma apressada em busca da origem. Sem sucesso. Esperou que voltasse a fazer-se ouvir. Em vão. Desistiu de procurar e assumiu que tinha sido a sua imaginação. Talvez estivesse a ficar louco e não deveria voltar mais ali. O sol começava a pôr-se e o rapaz partiu da montanha com esse pensamento na sua cabeça.
No dia seguinte voltou à montanha de manhã cedo. Faltou à escola para ir para lá. Tinha a certeza que aquele olá não tinha sido da sua imaginação, por mais que não tivesse achado a origem. Quando chegou novamente à montanha ouviu novamente o mesmo olá mas, desta vez, fez algo que não tinha feito anteriormente: olhou em frente. Conseguia ver do outro lado da montanha uma rapariga. A distância entre os dois não permitia tirar muitas conclusões sobre o seu aspecto, além de tinha um cabelo grande e castanho, devia ter mais ou menos a idade dele e, tal como ele, estava sentada na relva, a olhar para o horizonte.
- Será que ela me consegue ver? - pensou, corando ligeiramente de seguida.
Pensou o que faria se a rapariga gritasse olá novamente. Será que deveria responder? Antes que pudesse pensar mais a voz da rapariga fez-se ouvir. Um olá ecoou por toda a montanha novamente. O rapaz levantou-se, encheu o peito de ar e respondeu, também com um olá. Ficou nervoso. Será que ela iria responder? O mais provável era assustar-se e ir embora dali. Mas não foi isso que aconteceu. Logo de seguida a rapariga fez ouvir outro olá, ao que o rapaz respondeu com o mesmo. Ficaram nisso durante o resto da manhã, até que ela se levantou e se foi embora, fazendo ecoar um adeus. O rapaz não respondeu. Estava curioso. Queria saber quem ela era. O que fazia ali. Porquê? Quando? Tantas perguntas e nenhuma resposta. Não podia fazer nada. Pegou na bicicleta e desceu a montanha. Não foi às aulas de manhã mas ia aproveitar para ir às da tarde. Não acreditava que a rapariga fosse aparecer, portanto não estava ali a fazer nada. No dia seguinte voltaria lá e ela estaria lá. Ele tinha a certeza.
Ainda era cedo, o sol começava a mostrar-se e já o rapaz estava em cima da montanha. A mota tinha voltado da oficina portanto o tempo que demorava a fazer o caminho até ali era menor. Deitou-se na relva e, pela primeira vez, não conseguia pensar direito. Não conseguia formar um raciocínio sem que este fosse quebrado, como uma ponte mal construída que desaba durante a sua inauguração. Ali, deitado, acabou por adormecer. Sonhou que a rapariga não vinha, nem naquele dia nem em nenhum outro. Sonhou que era tudo uma projecção dos seus desejos interiores e que não passava de uma ilusão. Acordou em sobressalto e levantou-se, com o coração, para ver a montanha da frente. Ela estava lá e não demorou muito a fazer-se ouvir.
- Olá! - gritou ela, fazendo a sua voz ecoar por todo o lado. Um grupo de pássaros levantou voo, como se estivessem assustados, quando o eco terminou.
- Olá! - respondeu o rapaz, desejando que este dia não fosse como o anterior, em que a conversa não passou disso.
- Pensei que hoje não ias responder. Pensei que tivesses morrido.
- Desculpa... acho eu.
- Não faz mal.
- Como é que te chamas? - perguntou ele de forma hesitante enquanto olhava para o lado para disfarçar o facto de estar a corar. Pensou para si mesmo porque estava a disfarçar se ela não iria conseguir ver.
- Maria.
- Eu chamo-me Leonardo.
- Leonardo... é um nome giro.
- É um nome como todos os outros.
- Ou isso.
Continuaram a falar todos as manhãs. Ela contou-lhe que faltava frequentemente de manhã à escola para ir para ali porque era um sítio calmo e não suportava o stress da cidade. Tornaram-se amigos. Conheceram-se de forma bizarra mas no entanto era como se já se tivessem conhecido antes. Talvez noutra vida. Talvez fosse apenas destino. Um dia ela desafiou-o a atravessar a velha ponte de madeira que unia as duas montanhas. Ele não o fez. Sabia que era morte certa. Era uma ponte velha, devia ser mais velha que os seus pais e abanava por todos os lados com o vento. Ela disse que ainda bem que ele não o fez. Era um desafio. Queria ver se ele era um idiota ou se era mesmo inteligente, como ela pensava. Riram-se os dois, ficando com um sorriso no rosto. Quando o sol se punha, iam-se embora. No entanto, naquele dia, ele não conseguia parar de pensar nela. Mesmo de noite tinha vontade de ficar ali sentado a falar com ela. Sentia-se bem. O vento podia ser gelado e a distância entre os dois era considerável, mas era como se um calor humano que nenhum dos dois conseguia ver os ligasse. Começou a questionar onde estava a lógica disso. Ele nunca a viu. Não podia estar com ela. Nunca iria acontecer. Escolher este caminho apenas o ia tornar miserável. Ia magoar-se. Ia cair num buraco. No dia seguinte não foi à montanha. Ficou a dormir. Ou a fingir que dormia, tanto faz. Durante vinte e quatro horas ficou debaixo dos lençóis, incapaz de decidir o que deveria fazer. Os pais perguntaram-lhe se ele estava doente, ao que ele respondeu que não tinham nada com que se preocupar, que estava só cansado. Durante a semana seguinte não foi à montanha, nem foi à escola. Caminhou pela cidade, todos os dias, almoçando num restaurante e passando as tardes num banco de jardim, a brincar com um cão abandonado que por lá parava. A rapariga ficou sozinha, cada um desses dias. O olá não chegava ao destino. Propagava-se pelo ar, sem forças para chegar a onde ela queria. Ao que ela mais desejava. Sentia-se sozinha. Tinha confiado nele e ele tinha-a deixado. Porquê? Já não se ouvia um olá a ecoar no ar. Ouvia-se um porquê. Um porquê molhado pelas suas lágrimas. Tinha a sensação que algo não estava bem e não sabia o que. Mas queria saber. Desejava com todas as suas forças saber. Ela não tinha mais ninguém em quem confiar. Estava sozinha. Quando deu por si estava, involuntariamente, em frente à velha ponte de madeira. Devia atravessa-la? Iria morrer, com quase toda a certeza. A ponte não oferecia segurança nenhuma e tinha aspecto de que ao mínimo peso que lhe fosse colocado em cima que iria desabar. Ela fechou os olhos. Não queria racionalizar. Não queria procurar lógica. Queria deixar-se levar pelo seu coração, ponto final. Foi o que fez: fechou os olhos e, quando deu por si, corria pela ponte fora. A madeira da ponte rangia violentamente, ameaçando quebrar a qualquer segundo mas a rapariga não parou num único momento. Quando chegou ao outro lado abriu os olhos e respirou fundo. Passou as mãos pelo corpo para ter a certeza que estava viva. Desceu a montanha e entrou na cidade, em busca de Leonardo. Em busca da pessoa em que podia confiar. Mas como é que o ia encontrar? A única coisa que sabia dele é que tinha o cabelo preto... nada mais. Deviam haver centenas, milhares de pessoas com o cabelo preto naquela cidade. Andou pela cidade, na esperança de que algum sinal divino a orientasse, mas sem sucesso. Comprou uma sandes num vendedor ambulante e sentou-se num banco de jardim, ao lado de um rapaz que fazia festas num cão vadio. Meteu as mãos na cara e chorou. Chorou porque tinha encontrado alguém em quem podia confiar, alguém de quem gostava e tinha perdido essa pessoa. O seu choro foi interrompido pelas palavras do rapaz ao cão.
- Sabes cão, eu tal e qual como tu sou vadio. Não tenho um destino certo. Uma casa é um sítio onde alguém espera por nós, certo? Então acho que posso dizer que, como tu, não tenho casa. Provavelmente perguntar-me-ias pelos meus pais. Não tenho propriamente uma boa relação com eles. Aliás, nem tenho uma relação com eles. Muitas das vezes nem nos cruzamos, quando eles chegam já eu estou a dormir. Quando era uma criança as coisas eram diferentes... gostava de ser criança, só por isso. Talvez se eu fosse uma criança ainda, as coisas seriam diferentes. Quando somos crianças a fórmula para atingir a felicidade é muito mais simples. Agora... agora é tudo mais complicado. Não é que eu não tenha amigos. Eu tenho-os. Diria mais que são colegas, mas já que o sentido da palavra amigo hoje em dia está tão banalizada... porque não? Não é uma maré contra a qual eu queria remar, seja como for. Mas, ainda assim, não consigo confiar plenamente neles... só uma vez na minha vida consegui confiar numa pessoa e queres saber a melhor? Nunca lhe meti os olhos em cima. Quer dizer, meti, mas foi ao longe. Muito longe. Tínhamos um vale entre nós. Um vale com um rio furioso. Se as pedras não dessem conta de quem ali caísse, o rio faria o favor de terminar o serviço. Nunca a vou ver na vida. Era impossível. Achei que continuar a ir àquela montanha para falar com ela só iria alimentar este sentimento que cresceu no meu coração e isso só me traria miséria mas, no entanto, este caminho também me trouxe tristeza. Será que há algum caminho que não a traga? A tristeza, é ao que me refiro. Se houvesse um caminho que trouxesse aquela rapariga, era esse que eu escolheria.
Quando terminou o discurso ao cão o rapaz pegou num pequeno ramo e escreveu na areia do chão um M.
- É um M de Maria. - disse ele ao cão. - Daqui a pouco o vento começará a soprar e irá apagar este M que eu fiz aqui no chão. Será que é o que irá acontecer com o que eu sinto? Não sei. Nem sei se é isso que quero.
A rapariga começou a chorar. O choro da rapariga chamou a atenção do rapaz, que até ali tinha estado concentrado na sua conversa com o cão, ou melhor, no seu monólogo.
- Estás bem?
- És um idiota, Leonardo.
O rapaz ficou confuso, mas não demorou muito a perceber quem ela era. A rapariga abraçou-o e chorou. Chorou de alegria. Alegria porque o tinha encontrado. No meio do abraço e das lágrimas o cão partiu. Afinal de contas, era um cão vadio, não pertencia ali. Na sua mente vagueava o pensamento de que, se calhar, também para ele havia alguém que esperava por ele. Se calhar...

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Mãe, como é que nasceram as estrelas?

Acho que já todos, pelo menos uma vez, fizemos esta pergunta.Foi daí que nasceu o texto nada cliché que se segue.

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«Mãe, de onde vieram as estrelas?» perguntou a criança irrequieta. Sabia bem que era a sua hora de dormir mas não tinha vontade. Atormentava-lhe a ingénua mente as estrelas que iluminavam o seu quarto através da clarabóia que tinha por cima da cama. A mãe, apanhada de surpresa pela questão, sentou-se num cadeirão, perto da cama, em silêncio. A forma como passava a mão pelos longos cabelos dourados fez a criança perceber que ela estava a pensar. Era o gesto habitual que a mãe fazia enquanto pensava.
- Bom, não vale a pena tentar escapar-me, pois não? Irias insistir de qualquer maneira e se eu não contasse hoje teria de contar amanhã. É uma história longa, é bom que não adormeças antes do fim! - respondeu a mãe à pergunta da sua filha. Num ápice a criança sentou-se na cama, com os seus olhos verdes bem abertos e fixados nos da mãe.
- Tudo começou há alguns anos. Não te sei dizer ao certo quantos, mas os suficientes para não seres nascida na altura. Naquela altura as noites eram assustadoras. No céu apenas a Lua se fazia mostrar. Mas nem sempre a Lua lá estava. Havia dias que a Lua não aparecia e essas noites eram as piores. O mundo ficava mergulhado numa escuridão aterradora. Era como se, durante algumas horas, todos fossemos cegos e tudo o que restasse fosse o nosso tacto, a audição, o paladar e o olfacto. Com o amanhecer, amanheciam todos os acontecimentos bizarros da noite. Mortes e raptos eram apenas os mais frequentes. Principalmente a crianças, que no escuro perdiam a noção de onde estavam os seus pais e acabavam por ir parar às mãos erradas. Raros eram os casos em que voltavam a aparecer. Enquanto tudo isto acontecia na Terra, no Espaço as coisas eram diferentes. Contam as histórias que no Espaço, sentado em cada Lua, de cada planeta, havia um rapaz. Um rapaz sem nome. Um rapaz sem nada. Um rapaz do espaço. A Terra não era excepção, também tinha o seu Rapaz do Espaço. Era um Rapaz pequeno, com roupas brancas e um cabelo cinzento que lhe tapava os olhos. Consta que ele não gostava de ver o que acontecia na Terra. Não gostava do mal, da ganância, da guerra. Portanto, ele não fazia nada. Ficava apenas sentado na Lua, com os olhos tapados pelo seu cabelo, agarrado aos joelhos. Durante muito tempo assim foi. Ele apenas fazia algo quando sentia que o equilíbrio do planeta estava em perigo, caso contrario ficaria no seu sítio, sentado, em paz. Preferia assim. Passado um período de tempo indeterminado o Rapaz afastou o cabelo de um dos olhos. Ele sabia que se tinha passado muito tempo desde a última vez que o tinha feito. Desta vez não iria ver pessoas a carregar blocos de pedra enormes enquanto eram chicoteadas, pelo menos era o que ele queria acreditar. Quando começou a olhar para a Terra fixamente viu que nada tinha mudado. As pessoas continuavam a pisar-se sem pudor, ignorando o que o outro pudesse estar a sentir. As pessoas ainda matavam. Não morriam de exaustão ou sede enquanto carregavam blocos de cimento, era certo, mas morriam fuzilados por armas de fogo, queimadas vivas ou em jogos doentios. Sentiu as forças vitais fugirem-lhe enquanto observou um soldado, provavelmente um general, ordenar um grupo de condenados a atravessar um rio recheado de minas terrestres prometendo-lhes que os que voltassem seriam soltos. Dos oito que partiram, só dois voltaram. Esses dois foram abatidos a tiro no momento em que concluíram a travessia. Quase perdeu a esperança. Pensou para si próprio que, já que tinha arriscado, não iria desistir ali e iria ver o resto do planeta também. Enquanto via o planeta os seus olhos acabaram por ficar presos numa rapariga. Tinha olhos verdes, como uma esmeralda, e um cabelo loiro. Ficou a observa-la durante algum tempo. Sentiu-se esquisito por o estar a fazer. Será que ela sabia que ele estava a observa-la? Provavelmente não. Até era melhor assim. Se soubesse, iria acabar por achar tudo aquilo bastante assustador. Como a noite. A rapariga caminhava rumo a algum sítio com um grupo de raparigas que, pouco a pouco, iam ficando pelo caminho, como uma fileira de soldados que vai gradualmente perdendo os seus membros durante o decorrer da guerra. Chegado a um certo ponto, a rapariga seguia sozinha. O Sol no horizonte começava a fechar os olhos e a rapariga começava a acelerar o passo. Sabia que aquilo era um aviso de que dentro de algum tempo a visão seria um sentido que se tornaria inútil. O Rapaz apercebeu-se de dois rapazes que seguiam a rapariga. Consoante o ritmo da sua caminhada se alterava, o deles também. Ingenuamente o Rapaz ficou quieto a observar. Assumiu que seria apenas uma casualidade ou dois amigos na brincadeira. Essa ideia manteve-se até ao momento que os dois rapazes abordaram a rapariga, tentando tirar-lhe a mala enquanto a ameaçavam com uma arma branca. O Rapaz levantou-se em pânico. Aquela sensação de paz e calma que a rapariga lhe transmitia estava ameaçada. Aquela rapariga que lhe estava a oferecer tantas coisas novas de uma forma tão simples estava ameaçada e ele não sabia o que fazer. Pela primeira vez na vida não conseguia pensar. Não conseguia desenvolver mais que uma vogal ou uma consoante na sua cabeça. Nesse momento apareceu um senhor a seu lado. Um senhor com uma certa idade, também vestido de branco e com uma bengala preta com detalhes em dourado. Pediu ao Rapaz que se sentasse, que a rapariga estava segura, ele havia parado o tempo no planeta. O Rapaz sentiu necessidade de confirmar com os seus próprios olhos. Era verdade, estava mesmo tudo parado no planeta. Sentia o equilíbrio do planeta ameaçado, mas o velho impediu-o de fazer algo, dizendo que estava tudo bem. Sentaram-se os dois, ao lado um do outro. Durante tempos ficaram em silêncio. Foi o velho a dar o primeiro passo na conversa, perguntando-lhe se ele tinha noção das consequências do que ia fazer. O Rapaz respondeu que não, mas que também não queria saber, apenas queria fazer o que achava que tinha de fazer, justificando isso com tudo o que aquela rapariga lhe tinha oferecido. O velho levantou-se e disse que o Rapaz estava perdido, esboçando de seguida um sorriso e desaparecendo. O Rapaz levantou-se e encaminhou-se para a Terra. No local onde a rapariga estava em perigo um enorme clarão começou por iluminar o céu, aproximando-se do solo acabando por produzir uma luz tão forte que impedia toda a gente de abrir os olhos. Era algo irónico como tanto na luz, como na escuridão, a sua visão lhes era negada. Quando a luz desapareceu e a rapariga abriu os olhos estava tudo bem. Estava sozinha novamente, os dois rapazes tinham desaparecido e a mala ainda estava consigo. Correu até casa, mais assustada pelo enorme clarão de luz e pela forma como os dois rapazes se evaporaram do que pelo que assaltado falhado de que tinha sido vitima. O Rapaz voltou para a Lua, sentou-se e sentiu tudo em si desvanecer. Pensou para si que seria aquela a consequência de ter descoberto o que eram os sentimentos mas que, apesar disso, não tinha sido em vão. Ele ia desaparecer, era certo, mas levaria consigo a certeza de que tinha feito o que era correcto e tinha descoberto algo que muita gente nunca descobriu: a chave para a felicidade. O Rapaz desfez-se em pó. Não era um pó normal, era um pó luminoso de várias cores. Os outros rapazes do espaço tinham observado atentamente o que aconteceu. Um a um, sorrateiramente, escaparam das suas luas e vieram à Lua da Terra. Cada um pegou num grão de pó e, perto da Lua, fizeram força de forma a unir cada grão, na esperança que o seu companheiro voltasse à vida. Em vez disso, o que obtiveram foi algo semelhante a uma esfera luminosa. Luminosa o suficiente para brilhar na escuridão que se fazia ver na noite terrestre. Para os rapazes do espaço, aquilo era o coração do seu amigo. Para nós, terrestres, chamámos aquilo de estrela. Foi assim, que apareceram as estrelas.
Terminada a história Carolina estava fascinada. Com um sorriso pacífico no rosto aninhou-se nos lençóis e não demorou muito a adormecer. A mãe, perdeu algum tempo a olhar pela clarabóia para uma estrela que brilhava incessantemente no céu, mais que todas as outras.
- Boa noite. - sussurrou ela, enquanto abria a porta do quarto para deixar a sua filha dormir.




Crow.