sábado, 21 de maio de 2011

Fugitivo


Com a mala às costas fez questão de bater a porta com força. Queria ir-se embora mas não queria que a sua saída não fosse notada. Para si próprio sussurrava que tal era porque queria que se sentissem mal por ele ter partido, mas ele sabia que não era bem assim. Queria que procurassem por ele. Queria que tivessem saudades dele. Queria, por uma vez na vida, sentir-se desejado naquele lar. Queria que pensassem nele. Essa seria a única forma de ele dizer que aquela era a sua casa. Afinal, o nosso lar é um lugar onde alguém pensa em nós. Foi quando o eco da porta parou de ecoar pelo prédio que percebeu o que estava a fazer. Foi invadido por uma sensação de liberdade. Para onde iria? Era ele que decidia. Podia ir para onde quisesse. No entanto essa sensação de liberdade trazia acompanhada uma sensação de solidão. Se era completamente livre era porque estava sozinho. Se houvesse alguém, nem que fosse apenas e só uma pessoa, como, por exemplo, a sua irmã, ele teria sempre a preocupação que o amarraria a ela. Neste caso não. Era completamente livre. Estava sozinho. Desceu lentamente as escadas. Apesar de ser um primeiro andar chegou à porta que ligava o prédio à rua como se tivesse acabado de descer um arranha-céus. Quando saiu à rua encostou-se uma parede e olhou para as janelas da sua casa. Queria ver se alguma luz se acendia. Tinha esperança que, naquele momento, encontraria o sinal que tanto queria. Sem sucesso. As luzes mantiveram-se da cor da noite, mortas. Começou a sentir-se frio, por dentro e por fora. A ligeira brisa gelada que se fazia sentir naquela noite de Verão trespassava-lhe a pele e a carne como afiadas navalhas num tufão. Ao olhar para o céu reparou que a lua cheia se fazia mostrar no meio das nuvens. Enquanto a contemplava esta escondeu-se por detrás das mesmas, como se ele não fosse digno da sua beleza. Suspirou, pegou na alça da mala e caminhou. Para onde ia, não sabia. Sabia apenas que tinha de ir para algum lado. Optou por não se afastar muito e sentar-se à porta de um prédio a atirar para o chão uns dados que tinha guardado na mala. Queria ver se tinha sorte. Quantas vezes lhe calharia o seis? No que toca a dados o seis é o maior número portanto é sinal de vitória. Foi o que fez aparecerem os primeiros raios de sol. Foi aí que acordou daquele transe em que parecia preso com os dados. Perdeu a conta de quantas vezes os tinha atirado, mas memorizou o facto de apenas por treze vezes ter saído o número seis. Tinha a sua piada o facto de, em tantas vezes que atirou os dados, ter saído treze vezes o número seis. Treze. O número do azar. Não que ele acreditasse em sorte ou azar, mas era caricato.
Pela posição do sol no céu deviam ser quase sete horas da manhã. As pessoas começavam a sair de casa para ir para o trabalho. Quanto mais olhava mais se questionava sobre a felicidade daquelas pessoas. Não tinha nenhuma dúvida que se a alguma delas fosse dada a chance de não trabalhar e, ainda assim, receber dinheiro que elas optariam por essa mesma. Afinal, elas próprias arranjam subterfúgios para o fazer. Largou rapidamente esse assunto que lhe dava asco, pegou na mochila e continuou a andar sem destino.
Num infantário as crianças saltavam de um lado para o outro. As meninas estavam de volta de uma casa de plástico, maior que elas, a brincar com bonecas ou a gritar a alto e bom som que vendiam gelados. Os rapazes jogavam à bola com uma bola de plástico que já tinha perdido os desenhos de origem. Quando a bola veio parar cá fora um rapaz aproximou-se da rede que separava o infantário do exterior e pediu «senhor, podia dar-me a minha bola?». Pegou na bola e devolveu ao rapaz, que lhe devolveu um sorriso rasgado. Senhor. O rapaz chamou-lhe senhor mas ele não tinha minimamente ar disso. Pelo menos ele sempre associara um senhor um homem de fato e gravata, um empresário. Ele trazia vestido umas calças de ganga perfeitamente vulgares, uma t-shirt azul com uma camisa branca por cima. Decidiu que todos os dias passaria ali. Trazia-lhe memórias de quando era criança e não compreendia as coisas. Queria voltar a ser assim. Ingénuo. Assim seria enganado e nem sequer iria perceber. Agora era enganado, percebia e não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. A sensação de impotência era enorme. Eram cicatrizes que tatuavam o corpo de forma permanente. O sol punha-se e os familiares começavam a vir buscar as crianças. Lembrou-se de quando o pai se esqueceu de o ir buscar e ele ficou sozinho, sentado à berma da estrada durante quatro horas. Na altura teve medo, não compreendia o que estava a acontecer. E se aqueles monstros que ele via na televisão, nos seus desenhos animados favoritos, existiam muito e tinham atacado os seus pais? Ele ia ficar sozinho! Riu-se dos seus pensamentos ingénuos da altura. Quando voltou a acordar da viagem pelo passado reparou que havia um rapaz que estava sentado sozinho na berma de estrada. A velocidade da sua respiração quadruplicou, como se ele estivesse a ver as suas memórias mais dolorosas num espelho à sua frente. A única diferença é que o rapaz tinha um saco com doces na mão. Ele, na altura, tinha uma bola.
- Está tudo bem? - perguntou, aproximando-se do rapaz.
- Ela diz sempre para eu não falar com estranhos! - respondeu de forma pertinente o pequeno rapaz.
- Não faz mal, não precisas de falar comigo. Vou só ficar aqui para não teres medo de ficar sozinho ou que te aconteça alguma coisa.
Era aquela a verdade. Não tinha a mínima intenção de falar com o rapaz, simplesmente queria fazer por ele o que ninguém fez na sua altura. Durante quase uma hora ficaram ali os dois em silêncio olhando à sua volta. Do outro lado uma rapariga chamou pelo pequeno rapaz. Este levantou-se com um sorriso gigantesco na cara e saltou para cima dela. Sentiu-se aliviado. O rapaz ia para casa, estava tudo bem.
A noite aproximava-se e precisava de um sítio algo seguro onde passar a noite. Optou por passar a noite perto do mar, numa zona onde vários pescadores passavam a noite a trabalhar. O facto de estar ali gente oferecia-lhe alguma sensação de segurança para poder descansar um bocado. Encostou-se contra a parede, sentou-se, agarrou a mala no meio dos braços e cerrou os olhos. Não demorou muito a adormecer.
Ao acordar optou por dar um mergulho. Estava perto do mar, podia tirar proveito disso. Não era grande nadador e praia nunca tinha sido o seu sítio favorito mas o mar era algo que o fascinava. Aquela imensidão de água, aparentemente tão simples, escondia tanto. Ambicionamos sempre sair do nosso planeta quando nem o conhecemos. Vestiu-se e tomou o pequeno almoço num café perto do tal infantário. No fim optou por sentar-se no mesmo banco do outro dia.
- Desculpa? - disse uma rapariga aproximando-se e sentado-se também no banco.
- Sim?
- Obrigado por teres ficado com ele ontem.
- De nada, acho eu. - respondeu de forma fria, reconhecendo a rapariga do dia anterior. - Ainda assim, devias ter mais cuidado.
- Tens razão mas não tinha como vir mais cedo.
- Então devias ter pedido a outra pessoa que o viesse buscar.
- Não há outra pessoa.
A conversa morreu ali. Não quis perguntar por uma explicação porque não quis pisar territórios da vida de outrem aos quais não pertencia. Durante cinco minutos ficaram em silêncio.
- Os nossos pais morreram num acidente de viação. O meu pai bebia bastante e nesse dia decidiu conduzir. A minha mãe tentou impedi-lo e foi com ele para que corresse tudo bem. Morreram os dois. Choque frontal com um camião. Os restantes familiares nunca quiseram saber, só se aproximaram por dinheiro. Como tubarões quando reagem ao sangue. Não tive muito tempo para fazer amigos, portanto também não tenho nenhuns com quem contar. Somos só nós dois. Pelo menos no meu caso.
Remeteu-se ao silêncio novamente. Não sabia o que dizer e, assim sendo, o melhor era mesmo não dizer nada.
O tempo passou e era hora de almoço. Ela ainda estava ali sentada a seu lado, ambos em silêncio com os olhos focados em algo que não aquele lugar. Essa foco foi quebrado pelo barulho do seu estômago, que fez questão de fazer o mundo saber que estava com fome.
- Queres vir almoçar connosco? - disse ela rindo-se. - Seria uma forma de te pagar o que fizeste ontem.
Antes que ele pudesse responder que não o pequeno rapaz saiu a correr do infantário.
- Marta! - gritou com alegria, saltando para cima dela.
O pequeno rapaz olhou para ele e esboçou um sorriso enorme, tirou da mala um saco com algumas guloseimas e estendeu-lhe a mão com algumas.
- Toma! - disse ele. - Obrigado!
A rapariga riu-se e disse-lhe para ele aceitar. Hesitou mas decidiu aceitar, tal como acabou por aceitar o convite. Não tinha coragem de dizer que não.
Foram almoçar a um restaurante com um aspecto caseiro e acolhedor.
- Então, tu estudas? - perguntou ela, de forma a fazer conversa enquanto esperavam pela refeição.
- Não.
- Trabalhas?
- Também não. - respondeu novamente com a mesma frieza.
- Então o que fazes? Tens a minha idade portanto tens essas duas opções. A não ser que sejas milionário e tenhas decidido abandonar tudo para correr o mundo.
- Pode-se dizer que estás metade certa, sim. Saí de casa.
- Porquê?
- Porque a minha casa não era a minha casa. A nossa casa é onde alguém pensa em nós. Naquela casa ninguém pensa em mim. Não sou mais que um fardo.
- Sei o que é isso...
Vendo a expressão triste no rosto da irmã o pequeno rapaz interveio na conversa dizendo um disparate que para ele fazia todo o sentido. Ele não entendeu se o rapaz entendeu e fez de propósito ou se foi apenas o seu instinto de irmão a funcionar. O seu pensamento foi interrompido pelo empregado que trazia as refeições. Fora do restaurante a rapariga tirou um envelope do bolso e passou-lhe para a mão. Ele abriu e tirou de lá de dentro um envelope com um bilhete de avião e uma carta de emprego.
- Era a empresa do meu avô. Ainda tenho direitos lá, sabes. Tens aí o bilhete de avião para Madrid. Quando lá fores levas essa carta à empresa e podes ter a certeza que te dão emprego e te arranjam um alojamento temporário. Não é nada de especial, mas é o suficiente se queres refazer a tua vida. Agora tens uma opção. Podes voltar para casa que não chamas de casa, ou partir para uma vida sozinho. Boa sorte.
A rapariga virou costas, deu a mão ao pequeno rapaz e foi se embora. Ele ficou a olhar para o bilhete de avião. Porquê? Porque é que ela lhe tinha dado aquilo. Era um agradecimento? Sentiu-se identificada com ele? Porquê tanta compaixão para com um estranho? Não hesitou. Sabia que aquela era a única forma de fugir. Não havia forma de resolver aquele problema, então optou por fugir. Sabia que isso o assombraria para sempre, mas foi a escolha que fez e ia lidar com ela.
Já em Madrid optou por enviar uma carta de agradecimento à rapariga. Durante anos trocaram cartas. Ao inicio eram cartas irregulares falando apenas de como estavam as coisas a correr na emprega mas rapidamente se tornaram cartas fúteis sobre o dia a dia de ambos. Coisas como "hoje começou a chover bastante, optei por comprar um guarda-chuva para me prevenir" pautavam pela regularidade. Por vezes discutiam temas que surgiam nas notícias de ambos os países e chegava a por vezes parecer que se irritavam. Mas não. Fazia parte daquela dança que ambos estavam a dançar. Ele começava a pensar nela regularmente. Esses pensamentos sobre aquela rapariga apagavam lentamente a cicatriz que tinha aceitado de bom grado no dia que partiu. Mas não era só essa cicatriz que aqueles pensamentos saravam, eram todas. Pouco a pouco começava a entender aqueles sorrisos dos seus colegas de trabalho quando viam a esposa no final do trabalho. Era como se começassem a fazer sentido. Era como se ele os compreendesse agora. Mas todo esse castelo de cartas desmoronou num simples pedaço de papel. «Vou casar-me.». Leu três vezes a carta para ter a certeza do que estava a ler. Não derramou uma única lágrima. Levantou-se, guardou a carta na caixa de sapatos onde guardou todas as outras, pegou na sua velha mochila e colocou toda a roupa lá dentro. No dia seguinte demitiu-se do emprego e apanhou um comboio de forma aleatória. Fugiu, novamente. Fugiu, como fazia sempre. Mas sabia que nunca se ia esquecer.