sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Reflexão intemporal do que é real e do que não é.

O rapaz fechou os olhos e quando os abriu estava numa praia. Julgou ter ultrapassado os limites do pequeno patético ser humano e atingido o patamar de uma divindade, tendo absoluto controlo daquilo que o rodeava, podendo alterar o ambiente a seu bel-prazer. "Porque não?", pensou para si. Mergulhou tão profundamente nessa sensação de poder que se instalara dentro de si, que demorou a reparar que não estava só no vasto areal. Sentiu-se como se tivessem invadido o seu território sagrado. Sentiu-se como um pequeno patético ser humano se sente quando alguém descobre um segredo íntimo que só ele (e as duas dezenas de pessoas com quem o partilhou ingenuamente) deveria saber. A fina areia branca perdia assim todo o seu encanto e a suave brisa maternal começava a repugna-lo. A pessoa que se encontrava mais perto era um homem barbudo, meio calvo e que devia estar nos seus cinquenta anos. Aproximou-se do homem e perguntou-lhe o que estava ali a fazer e como tinha chegado ali. Perguntou mais do que uma vez, todas sem sucesso. O homem continuava a olhar para o livro, como se desligado do mundo. Como se não estivesse ali realmente. O rapaz assumiu que era apenas um homem mal educado e aproximou-se de um senhor mais jovem que também estava ali perto. O homem aparentava ser pai de família. Não sei bem explicar porquê mas tinha todo o ar disso. Se calhar era porque de minuto a minuto tirava os olhos do jornal para observar duas crianças que construíam castelos de areia. Ou então estava para casar e a noiva estava grávida. Ou era infértil e desejava ter filhos. Há um leque de opções bastante grandes, mas a de que ele é o pai das crianças ajuda a tornar a coisa menos negra. Voltou a fazer as mesmas perguntas que fez ao homem barbudo. As mesmas perguntas, as mesmas respostas. O homem continuou a ler o jornal e, de minuto a minuto, olhava para as crianças. Era como uma cassete estragada. Ninguém gosta de cassetes estragadas. O rapaz começava a ficar seriamente enervado. Aproximou-se das duas crianças e pontapeou violentamente os castelos. Estas nem pestanejaram. Rindo e brincando continuaram o ritmo frenético a que os construíam. Quando o rapaz olhou para o local onde estariam os castelos que ele destruiu, ficou ainda mais nervoso. Era como se ele nunca tivesse feito nada. Os castelos estavam ali, pequenos mas firmes e imponentes. Ficou com a ideia que se riam dele. Ficou com a ideia de que também o vento se ria dele. Cada vez que o rapaz voltava a pontapear o castelo, o vento soprava com força e, com uma velocidade impressionante, colocava os castelos em pé novamente. Desejou que o vento desaparecesse. "Afinal, eu sou o Deus deste sítio!" disse. Desejou com todas as suas forças que o vento desaparecesse e nunca mais voltasse, que aquele fosse um mundo sem vento. Quanto mais desejava, mais o vento lhe batia na cara. Toda a sensação de poder que tinha tido antes esfumou-se. Cada vez ficava mais nervoso e começou a culpar as pessoas. A culpa era delas, afinal, se elas não tivessem ali, nada tinha acontecido. Desejou com todas as suas forças que elas desaparecessem. Desta vez o seu desejo foi realizado. Tal e qual como a sensação de poder se esfumara, o mesmo aconteceu com as pessoas. O vento soprou forte e, como se de areia se tratassem, as pessoas foram levadas. Nenhuma delas mostrou um único sinal de sofrimento, agonia ou sequer uma reacção. Até desaparecerem completamente continuaram os seus movimentos rotineiros, como se de máquinas se tratassem. O rapaz sentiu-se mais calmo. Estava, finalmente, sozinho no seu Éden. Ficou ali durante dias a observar o mar e o horizonte. Reparou que nada tinha mudado. As ondas ondulavam de forma constante, sempre à mesma velocidade, com a mesma altura. O sol não se tinha posto, nem sequer se tinha movido da sua posição. Desde que as pessoas tinham desaparecido que aquele mundo tinha parado de funcionar. "Que problemático.", suspirou o rapaz.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Zero

(...)
"Vai tudo ficar bem.", foram exactamente estas as ultimas palavras que ela lhe disse. O olhar dela, enfeitado pela chuva torrencial que o seu olhar nublado fazia cair, era vazio. Ele conseguia ver isso, mas acreditou naquelas palavras. «Porque é que ela mentiu?» pensou ele para si próprio, enquanto tirava a caixa de fósforos da mochila. A verdade é que nada ficou bem. Dia após dia ele viu-a a piorar. Viu a neblina dos olhos dela tornar-se cada vez mais densa, acabando por esconder toda a vida que eles tinham. O que lhe doía mais não era o facto de ela ter partido. Era o facto de ela ter mentido. Ela não tinha necessidade.
O rapaz pegou na caixa de fósforos, aproximou-se de um pequeno trilho líquido que estava no chão daquela casa e acendeu-o. «Adeus.» sussurrou baixo, enquanto observava a casa arder. Tinha um pedaço de papel na mão que tinha escrito em si o numero um. Pegou numa caneta que tinha no bolso, riscou o um e escreveu um zero por cima. Atirou o papel para as chamas e quando este terminou de arder virou costas e seguiu o vento. Não tinha para onde ir de qualquer das formas.
(...)
Sentado na esplanada de um café lembrou-se de um pequeno barco que tinha. Fitou o céu limpo durante alguns segundos, respirou fundo e levantou-se. Dirigiu-se ao balcão do café e perguntou se a senhora lhe podia dispensar um papel e uma caneta. Esta acedeu ao seu pedido e ele agradeceu. No papel podia ler-se numa letra bastante bonita um solene Adeus.
(...)
Já no barco, preparado para partir para alto mar reparou numa pequena menina que olhava fixamente para ele, agarrada ao seu urso de peluche. Atirou-lhe um sorriso mas ela não respondeu de volta.
- Onde é que o senhor vai? - perguntou ela atrevidamente e com um ar sério desadequado a uma criança.
- Eu? Eu vou viajar. Vou para alto mar.
- Vai partir para não voltar?
- Que raio de pergunta!
- Sabe senhor, eu era pequena quando me sentei neste mesmo sítio e vi o meu bisavô partir para alto mar. Ele disse o mesmo que você. Tinha os mesmos olhos que você. Ele não voltou. A situação repetiu-se com o meu avô e com o meu pai também.
- Não faço intenções de voltar, é verdade.
- Porquê senhor? Não tem gente importante para si? Não acha que elas iram ficar tristes? Eu fiquei triste! - disse a criança gritando, com os seus olhos mostrando uma mistura de raiva e tristeza.
- Pessoas importantes? - disse o homem enquanto se ria. - Não. Zero. Já as perdi todas.
A criança não respondeu. O homem partiu para alto mar. Nunca mais voltou.

sábado, 21 de maio de 2011

Fugitivo


Com a mala às costas fez questão de bater a porta com força. Queria ir-se embora mas não queria que a sua saída não fosse notada. Para si próprio sussurrava que tal era porque queria que se sentissem mal por ele ter partido, mas ele sabia que não era bem assim. Queria que procurassem por ele. Queria que tivessem saudades dele. Queria, por uma vez na vida, sentir-se desejado naquele lar. Queria que pensassem nele. Essa seria a única forma de ele dizer que aquela era a sua casa. Afinal, o nosso lar é um lugar onde alguém pensa em nós. Foi quando o eco da porta parou de ecoar pelo prédio que percebeu o que estava a fazer. Foi invadido por uma sensação de liberdade. Para onde iria? Era ele que decidia. Podia ir para onde quisesse. No entanto essa sensação de liberdade trazia acompanhada uma sensação de solidão. Se era completamente livre era porque estava sozinho. Se houvesse alguém, nem que fosse apenas e só uma pessoa, como, por exemplo, a sua irmã, ele teria sempre a preocupação que o amarraria a ela. Neste caso não. Era completamente livre. Estava sozinho. Desceu lentamente as escadas. Apesar de ser um primeiro andar chegou à porta que ligava o prédio à rua como se tivesse acabado de descer um arranha-céus. Quando saiu à rua encostou-se uma parede e olhou para as janelas da sua casa. Queria ver se alguma luz se acendia. Tinha esperança que, naquele momento, encontraria o sinal que tanto queria. Sem sucesso. As luzes mantiveram-se da cor da noite, mortas. Começou a sentir-se frio, por dentro e por fora. A ligeira brisa gelada que se fazia sentir naquela noite de Verão trespassava-lhe a pele e a carne como afiadas navalhas num tufão. Ao olhar para o céu reparou que a lua cheia se fazia mostrar no meio das nuvens. Enquanto a contemplava esta escondeu-se por detrás das mesmas, como se ele não fosse digno da sua beleza. Suspirou, pegou na alça da mala e caminhou. Para onde ia, não sabia. Sabia apenas que tinha de ir para algum lado. Optou por não se afastar muito e sentar-se à porta de um prédio a atirar para o chão uns dados que tinha guardado na mala. Queria ver se tinha sorte. Quantas vezes lhe calharia o seis? No que toca a dados o seis é o maior número portanto é sinal de vitória. Foi o que fez aparecerem os primeiros raios de sol. Foi aí que acordou daquele transe em que parecia preso com os dados. Perdeu a conta de quantas vezes os tinha atirado, mas memorizou o facto de apenas por treze vezes ter saído o número seis. Tinha a sua piada o facto de, em tantas vezes que atirou os dados, ter saído treze vezes o número seis. Treze. O número do azar. Não que ele acreditasse em sorte ou azar, mas era caricato.
Pela posição do sol no céu deviam ser quase sete horas da manhã. As pessoas começavam a sair de casa para ir para o trabalho. Quanto mais olhava mais se questionava sobre a felicidade daquelas pessoas. Não tinha nenhuma dúvida que se a alguma delas fosse dada a chance de não trabalhar e, ainda assim, receber dinheiro que elas optariam por essa mesma. Afinal, elas próprias arranjam subterfúgios para o fazer. Largou rapidamente esse assunto que lhe dava asco, pegou na mochila e continuou a andar sem destino.
Num infantário as crianças saltavam de um lado para o outro. As meninas estavam de volta de uma casa de plástico, maior que elas, a brincar com bonecas ou a gritar a alto e bom som que vendiam gelados. Os rapazes jogavam à bola com uma bola de plástico que já tinha perdido os desenhos de origem. Quando a bola veio parar cá fora um rapaz aproximou-se da rede que separava o infantário do exterior e pediu «senhor, podia dar-me a minha bola?». Pegou na bola e devolveu ao rapaz, que lhe devolveu um sorriso rasgado. Senhor. O rapaz chamou-lhe senhor mas ele não tinha minimamente ar disso. Pelo menos ele sempre associara um senhor um homem de fato e gravata, um empresário. Ele trazia vestido umas calças de ganga perfeitamente vulgares, uma t-shirt azul com uma camisa branca por cima. Decidiu que todos os dias passaria ali. Trazia-lhe memórias de quando era criança e não compreendia as coisas. Queria voltar a ser assim. Ingénuo. Assim seria enganado e nem sequer iria perceber. Agora era enganado, percebia e não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. A sensação de impotência era enorme. Eram cicatrizes que tatuavam o corpo de forma permanente. O sol punha-se e os familiares começavam a vir buscar as crianças. Lembrou-se de quando o pai se esqueceu de o ir buscar e ele ficou sozinho, sentado à berma da estrada durante quatro horas. Na altura teve medo, não compreendia o que estava a acontecer. E se aqueles monstros que ele via na televisão, nos seus desenhos animados favoritos, existiam muito e tinham atacado os seus pais? Ele ia ficar sozinho! Riu-se dos seus pensamentos ingénuos da altura. Quando voltou a acordar da viagem pelo passado reparou que havia um rapaz que estava sentado sozinho na berma de estrada. A velocidade da sua respiração quadruplicou, como se ele estivesse a ver as suas memórias mais dolorosas num espelho à sua frente. A única diferença é que o rapaz tinha um saco com doces na mão. Ele, na altura, tinha uma bola.
- Está tudo bem? - perguntou, aproximando-se do rapaz.
- Ela diz sempre para eu não falar com estranhos! - respondeu de forma pertinente o pequeno rapaz.
- Não faz mal, não precisas de falar comigo. Vou só ficar aqui para não teres medo de ficar sozinho ou que te aconteça alguma coisa.
Era aquela a verdade. Não tinha a mínima intenção de falar com o rapaz, simplesmente queria fazer por ele o que ninguém fez na sua altura. Durante quase uma hora ficaram ali os dois em silêncio olhando à sua volta. Do outro lado uma rapariga chamou pelo pequeno rapaz. Este levantou-se com um sorriso gigantesco na cara e saltou para cima dela. Sentiu-se aliviado. O rapaz ia para casa, estava tudo bem.
A noite aproximava-se e precisava de um sítio algo seguro onde passar a noite. Optou por passar a noite perto do mar, numa zona onde vários pescadores passavam a noite a trabalhar. O facto de estar ali gente oferecia-lhe alguma sensação de segurança para poder descansar um bocado. Encostou-se contra a parede, sentou-se, agarrou a mala no meio dos braços e cerrou os olhos. Não demorou muito a adormecer.
Ao acordar optou por dar um mergulho. Estava perto do mar, podia tirar proveito disso. Não era grande nadador e praia nunca tinha sido o seu sítio favorito mas o mar era algo que o fascinava. Aquela imensidão de água, aparentemente tão simples, escondia tanto. Ambicionamos sempre sair do nosso planeta quando nem o conhecemos. Vestiu-se e tomou o pequeno almoço num café perto do tal infantário. No fim optou por sentar-se no mesmo banco do outro dia.
- Desculpa? - disse uma rapariga aproximando-se e sentado-se também no banco.
- Sim?
- Obrigado por teres ficado com ele ontem.
- De nada, acho eu. - respondeu de forma fria, reconhecendo a rapariga do dia anterior. - Ainda assim, devias ter mais cuidado.
- Tens razão mas não tinha como vir mais cedo.
- Então devias ter pedido a outra pessoa que o viesse buscar.
- Não há outra pessoa.
A conversa morreu ali. Não quis perguntar por uma explicação porque não quis pisar territórios da vida de outrem aos quais não pertencia. Durante cinco minutos ficaram em silêncio.
- Os nossos pais morreram num acidente de viação. O meu pai bebia bastante e nesse dia decidiu conduzir. A minha mãe tentou impedi-lo e foi com ele para que corresse tudo bem. Morreram os dois. Choque frontal com um camião. Os restantes familiares nunca quiseram saber, só se aproximaram por dinheiro. Como tubarões quando reagem ao sangue. Não tive muito tempo para fazer amigos, portanto também não tenho nenhuns com quem contar. Somos só nós dois. Pelo menos no meu caso.
Remeteu-se ao silêncio novamente. Não sabia o que dizer e, assim sendo, o melhor era mesmo não dizer nada.
O tempo passou e era hora de almoço. Ela ainda estava ali sentada a seu lado, ambos em silêncio com os olhos focados em algo que não aquele lugar. Essa foco foi quebrado pelo barulho do seu estômago, que fez questão de fazer o mundo saber que estava com fome.
- Queres vir almoçar connosco? - disse ela rindo-se. - Seria uma forma de te pagar o que fizeste ontem.
Antes que ele pudesse responder que não o pequeno rapaz saiu a correr do infantário.
- Marta! - gritou com alegria, saltando para cima dela.
O pequeno rapaz olhou para ele e esboçou um sorriso enorme, tirou da mala um saco com algumas guloseimas e estendeu-lhe a mão com algumas.
- Toma! - disse ele. - Obrigado!
A rapariga riu-se e disse-lhe para ele aceitar. Hesitou mas decidiu aceitar, tal como acabou por aceitar o convite. Não tinha coragem de dizer que não.
Foram almoçar a um restaurante com um aspecto caseiro e acolhedor.
- Então, tu estudas? - perguntou ela, de forma a fazer conversa enquanto esperavam pela refeição.
- Não.
- Trabalhas?
- Também não. - respondeu novamente com a mesma frieza.
- Então o que fazes? Tens a minha idade portanto tens essas duas opções. A não ser que sejas milionário e tenhas decidido abandonar tudo para correr o mundo.
- Pode-se dizer que estás metade certa, sim. Saí de casa.
- Porquê?
- Porque a minha casa não era a minha casa. A nossa casa é onde alguém pensa em nós. Naquela casa ninguém pensa em mim. Não sou mais que um fardo.
- Sei o que é isso...
Vendo a expressão triste no rosto da irmã o pequeno rapaz interveio na conversa dizendo um disparate que para ele fazia todo o sentido. Ele não entendeu se o rapaz entendeu e fez de propósito ou se foi apenas o seu instinto de irmão a funcionar. O seu pensamento foi interrompido pelo empregado que trazia as refeições. Fora do restaurante a rapariga tirou um envelope do bolso e passou-lhe para a mão. Ele abriu e tirou de lá de dentro um envelope com um bilhete de avião e uma carta de emprego.
- Era a empresa do meu avô. Ainda tenho direitos lá, sabes. Tens aí o bilhete de avião para Madrid. Quando lá fores levas essa carta à empresa e podes ter a certeza que te dão emprego e te arranjam um alojamento temporário. Não é nada de especial, mas é o suficiente se queres refazer a tua vida. Agora tens uma opção. Podes voltar para casa que não chamas de casa, ou partir para uma vida sozinho. Boa sorte.
A rapariga virou costas, deu a mão ao pequeno rapaz e foi se embora. Ele ficou a olhar para o bilhete de avião. Porquê? Porque é que ela lhe tinha dado aquilo. Era um agradecimento? Sentiu-se identificada com ele? Porquê tanta compaixão para com um estranho? Não hesitou. Sabia que aquela era a única forma de fugir. Não havia forma de resolver aquele problema, então optou por fugir. Sabia que isso o assombraria para sempre, mas foi a escolha que fez e ia lidar com ela.
Já em Madrid optou por enviar uma carta de agradecimento à rapariga. Durante anos trocaram cartas. Ao inicio eram cartas irregulares falando apenas de como estavam as coisas a correr na emprega mas rapidamente se tornaram cartas fúteis sobre o dia a dia de ambos. Coisas como "hoje começou a chover bastante, optei por comprar um guarda-chuva para me prevenir" pautavam pela regularidade. Por vezes discutiam temas que surgiam nas notícias de ambos os países e chegava a por vezes parecer que se irritavam. Mas não. Fazia parte daquela dança que ambos estavam a dançar. Ele começava a pensar nela regularmente. Esses pensamentos sobre aquela rapariga apagavam lentamente a cicatriz que tinha aceitado de bom grado no dia que partiu. Mas não era só essa cicatriz que aqueles pensamentos saravam, eram todas. Pouco a pouco começava a entender aqueles sorrisos dos seus colegas de trabalho quando viam a esposa no final do trabalho. Era como se começassem a fazer sentido. Era como se ele os compreendesse agora. Mas todo esse castelo de cartas desmoronou num simples pedaço de papel. «Vou casar-me.». Leu três vezes a carta para ter a certeza do que estava a ler. Não derramou uma única lágrima. Levantou-se, guardou a carta na caixa de sapatos onde guardou todas as outras, pegou na sua velha mochila e colocou toda a roupa lá dentro. No dia seguinte demitiu-se do emprego e apanhou um comboio de forma aleatória. Fugiu, novamente. Fugiu, como fazia sempre. Mas sabia que nunca se ia esquecer.


segunda-feira, 18 de abril de 2011

Entre a espada e a parede.

Ok, é o seguinte, o que se vem a seguir deve ser do mais bizarro que já escrevi. Simplesmente comecei a desenvolver a história na cabeça depois de ler algo no jornal, originalmente é muito maior mas não me apeteceu estender demasiado, portanto ficou só assim.



O cenário era algo surreal. Se ele não o tivesse visto com os seus próprios olhos, pensaria que estava a viver um qualquer filme de Hollywood, daqueles filmes que passam nas madrugadas dos canais generalistas. A escola estava envolvida num manto silencioso que só adensava a atmosfera de filme de terror. O jovem polícia recordou os seus próprios tempos do secundário e dos jogos que jogou, enquanto avançava, de arma em punho, lembrava-se que esta era a parte em que abria uma porta e algo bizarro, nunca antes visto aparecia à sua frente. Foi o que aconteceu. Na sala, onde antes um jovem motivado por razões desconhecidas se decidiu fechar e fazer dos alunos presentes reféns, o silêncio era fustigado por um gotejar do sangue a quem aquele jovem decidiu roubar a vida. E pelo som de uma respiração. Uma respiração violenta, como a de alguém que lutava contra os seus próprios princípios. Pouco a pouco, fazendo sinal aos seus colegas, o jovem polícia avançou. Não sabia o que esperar. Será que, como no filme de terror, do canto da sala, por trás da secretária estaria algo irreal à sua espera? Ficou petrificado com o que viu. Um rapaz, provavelmente com os seus 18 anos, segurava na arma que pertencia ao tal jovem que, por razões desconhecidas, tinha decidido cometer aquela atrocidade. À sua frente estava o corpo do tal jovem. Era notório que tinha sido baleado duas vezes no estômago e uma no peito. Provavelmente não teria sofrido muito e teria tido morte imediata, mas isso não lhe competia ele julgar. Ao aperceber-se da presença dos polícias o rapaz pousou a arma no chão e levantou-se, sem pestanejar.
- O que se passou? - perguntou o jovem policia, já na esquadra.
- Entre a espada e a parede. Foi nessa situação que ele me meteu. Então eu passei por ele. Sabe, eu conhecia. A ele, digo. Não sei se você se deu ao trabalho de investigar, mas eu poupo-lhe o trabalho. Era meu meio irmão. Somos filhos da mesma mãe mas de pais diferentes. Eu sou mais novo do que ele. Nasci depois. Quando eu nasci, a minha mãe morreu. Ela teve de escolher: se eu nascesse, ela morria. Podiam ter feito a coisa ao contrário. Mas não. Ela preferiu morrer. Desde esse dia, ele nunca me perdoou. Nunca fomos muito amigos. Devemos ser os meios irmãos mais impessoais de sempre. É como se não pertencêssemos ao mesmo mundo. Eu sempre soube que ele me odiava. Sempre. No entanto, sempre sorri para ele. Tinha esperança que, um dia, as coisas mudassem. Um dia, enquanto ainda éramos novos, de noite, ele tentou matar-me. Tentou asfixiar-me. O pai dele viu tudo e expulsou-o de casa. Lembro-me bem ainda hoje da enorme quantidade de vezes que ele gritou "ele nem sequer é teu filho, o teu filho sou eu!". Ele começou a tomar drogas, tornou-se mais uma sombra. Meteu-se com más companhias, fez assaltos. Hoje, ele decidiu por fim à sua vida. Entrou pela escola e disse-me que hoje morria. E eu morria também. Aquelas pessoas que você viu mortas, tudo começou porque tentaram impedi-lo. Quando ele disparou sobre uma, ganhou gosto à coisa, sabe. Não parou. Disse que queria que eu visse todos os meus amigos a morrerem, sem ser capaz de fazer nada. Nunca me senti tão fraco na minha vida e, quando dei por mim, chorava compulsivamente. Até que ele chegou perto de mim e eu fiquei encostado à parede. Durante a minha vida, tudo o que fiz foi chorar. Quando jogava futebol e caia, eu chorava. Quando tirava uma má nota, eu chorava. Quando o meu cão morreu, eu chorei. Quando fui assaltado, eu chorei. Foi quando, sem saber como, lhe consegui tirar a arma e disparei. Fechei os olhos e disparei. Enquanto disparava pedi a mim próprio para, por favor, o matar. Desejei mata-lo. Matei-o e fi-lo porque quis. Não me arrependo. Se tenho algum momento da minha vida em que tenho de me arrepender, foi o momento em que nasci, visto que foi o momento que tudo isto nasceu também. Fui eu que lhe estraguei a vida, portanto parece que o destino queria que fosse também eu a por-lhe um termo. - relatou o jovem sem pestanejar.
O jovem polícia não respondeu. Estava demasiado chocado pelo que tinha acabado de ouvir. Levantou-se e encaminhou o rapaz para a sua cela. Iria ser julgado na manhã seguinte. Afinal, tinha morto uma pessoa.
Durante a noite o jovem policia aproximou-se da cela do rapaz e abriu-a.
- Vai te embora. - disse.
- Porquê? - perguntou o rapaz, sem sabendo como reagir perante aquela situação.
- Se não te fores embora, irás acabar preso. Eu sou relativamente novo aqui, mas em todos os outros sítios onde trabalhei já vi casos semelhantes. Fico surpreendido como coisas destas ainda continuam a acontecer. Nunca fiz nada quanto a isso. Todos acabaram por ir presos, a meus olhos, de forma injusta. Eu nunca fiz nada. Hoje, lembrei-me do quão fraco me senti em todos os momentos e, sinceramente, não quero voltar a ter essa sensação. Não é o trabalho de um polícia fazer justiça? Então que seja. És novo. Tens de ter esperança e acreditar em ti. Se não acreditares em ti, acredita em mim, alguém que acredita em ti.
O rapaz esboçou um sorriso e saiu.
O polícia foi preso pelo seu acto e suspenso dos seus deveres, acabando por mais tarde se demitir. Afinal, não faria sentido ser polícia, se não podia fazer justiça, certo?

quarta-feira, 6 de abril de 2011

A metáfora que nos une

Não tenho escrito nada de especial, estou à espera do resultado de algo que, para mim, é ligeiramente importante, portanto não me consigo sequer concentrar. No entanto, saiu isto.

A metáfora que nos une
É a mesma que nos separa
Tornando aquela chuva
Numa proeza rara
Equilibrando o calor e o frio
Devolvendo a matéria ao espaço vazio
Mas é uma metáfora incessante
Que exige pedaços de nós
Consumindo-nos, pouco a pouco
Sem parar
Até não haver por onde pegar
Até só nos restarem os olhos
Para podermos observar a nossa miséria
E nós iremos olhar
E iremos pensar
"Valeu a pena".

quarta-feira, 9 de março de 2011

Onde estás?


Onde estás?
No que estás a pensar?
Onde quer que vás
Serás que pensas em mim,
nos teus amigos,
mesmo que seja pouco?
Já atingiste os teus objectivos...
Então porque não voltaste?
Ainda me lembro quando me perguntaste
Porque me preocupava tanto.
Lembras-te do que respondi?
Quando vamos crescendo, começamos a compreender
O que vai no coração das pessoas
Hoje já somos os dois crescidos.
Naquele dia, enquanto fugíamos da chuva,
como dois estranhos anónimos
dois completos antónimos
Conseguiste ver? O meu coração.
Eu não consegui ver o teu.
Porquê?
Abdicaste do teu coração, ao longo do caminho?
Será que viste o meu, o quanto eu me senti sozinho?
Eu preocupo-me,
Sou teu amigo.
Se alguém te magoar, eu vou querer vingança.
Se alguém me magoar, os meus amigos também se vão querer vingar.
Será um ciclo vicioso, percebes?
Não somos mais crianças,
Por isso percebemos essas coisas.
Será que esse fogo te consumiu da cabeça aos pés?
Eu vou continuar a procurar mas...
Sinceramente...
Começo a perder a visão de quem tu és...

quarta-feira, 2 de março de 2011

Deserto

Não é estranho
Chover num deserto?
É como se a morte
Fosse um dado permanente e certo.
Até no deserto,
se pode erguer uma utopia
Onde a lua ilumina a noite
E chove durante todo o dia.
Durante a noite,
as estrelas dançam em alegria
A escutar a sinfonia,
tocada pelo vento.

Do nada nasceu tudo
É o que passa pela cabeça do miúdo
Deitado no topo de um edifício
Quem te viu e quem te vê
Diz ele para o deserto
Ao transformar o nada em tudo,
Ele sentiu-se, finalmente, completo.



« Cria. Imagina. Inventa. Usa a parte colorida da massa cinzenta. »