quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Mil Metros de Altitude

Não tive tempo de reler para ver se tinha erros, portanto peço desculpa caso existam. Espero que gostem.



Era Primavera. Finalmente o Inverno tinha adormecido, permitindo a quem dele se abrigou acordar. As árvores voltavam a vestir-se, alguns animais, como o esquilo, davam ares da sua graça e a neve derretia. Fora isso era um dia como todos os outros, uma rotina para cumprir e nada mais, sendo o momento de chegar a casa o menos aguardado do dia. Quando o fazia sentia-se sozinho. Os pais trabalhavam até ao momento em que o sol se punha e ele acabava sempre por ficar sozinho naquela casa enorme e ficar ali deprimia-o. Geralmente acabava por ir a casa deixar apenas os livros da escola e ia para a cidade fazer algo. Qualquer coisa era melhor do que ficar sentado naquela casa vazia. Ficar num jardim a olhar para o céu, passar pela livraria e ver quanto tempo demorava até ao dono, já com alguma idade, dizer que aquilo não era uma biblioteca e que se ele queria ler o livro teria de o comprar, ver as lojas ou simplesmente andar. Mas naquele dia nem isso lhe apetecia. Estava farto de ver as mesmas nuvens, o dono da livraria já tinha desistido de lhe dizer que aquilo não era uma biblioteca e andar em ruas apinhadas de gente, numa verdadeira competição de quem se consegue esquivar mais rapidamente, não era propriamente o seu desporto favorito.
A norte da cidade havia uma montanha. Quando olhava para lá era invadido por memórias de quando os pais o levavam lá a passear. Era um sitio lindo e calmo. Lembra-se particularmente de quando o pai lhe disse que se há guerras no mundo é porque as pessoas nunca viram aquele lugar, que se mesmo depois de o ver ainda fossem capazes de continuar ou criar uma nova guerra era porque o mundo estava mesmo condenado. Na altura não entendeu bem o que aquilo queria dizer, era uma criança, portanto limitou-se a responder com um sorriso. No entanto, nunca se esqueceu daquela frase. Passou por casa para ir buscar a bicicleta e pedalou até à montanha. Uma viagem de quinze minutos, mais sessenta para chegar até ao ponto mais alto. Encostou a cansada bicicleta a uma árvore e deitou-se na relva. Deu por si a observar as nuvens e a associa-las a animais. Era como se ali as nuvens fossem diferentes das vistas da cidade. Aquelas pareciam genuínas. As da cidade pareciam forjadas por uma qualquer fábrica. Pareciam tristes. Quando se fartou de observar as nuvens sentou-se e ficou a olhar para o horizonte. Dali sentia que podia ver tudo. A cidade, uma verdadeira metrópole, parecia uma colónia de formigas. Pessoas cheias de dinheiro, fama e poder dali nem eram visíveis. Ficou a pensar nisso. Até onde é que a fama delas chegava? Se não as conseguia ver dali devia ser porque não eram assim tão grandes. No encadeamento desse pensamento lembrou-se que as pessoas quando se referem a montanhas é para as utilizar como metáfora para referir problemas ou dificuldades.
- Porquê? Uma montanha é um sítio tão calmo. Não incomoda ninguém. As pessoas têm assim tanta necessidade de tocar no que está do outro lado? Não lhes chega poderem ver o que lá está e saciarem assim a sua curiosidade? - pensou para si. Lembrou-se então do que estava a pensar anteriormente. Concluiu então que as montanhas eram metáfora para problema ou dificuldade porque as pessoas se sentiam pequenas perante elas. Sentiam-se ameaçadas. Todo aquele poder social e monetário que tinham era ridicularizado perante a imponência de uma montanha. Foi isso que concluiu e foi nisso que passou a acreditar. Passou a gostar ainda mais daquela montanha.
Tornou-se parte da rotina ir à montanha. Passou a ter curiosidade pela montanha que ficava em frente àquela em que ele costumava estar, dividida por um vale com um enorme e furioso rio. Pareciam espelho uma da outra. Todos os dias se questionava se, como ele, alguém estaria do outro lado, deitado na relva, a olhar para o ar. Deu por si todos os dias sentado perto da mesma árvore a olhar para a outra montanha. Pedia com todas as forças que do outro lado estivesse alguém igual a ele. Alguém que lhe fizesse companhia. No entanto, nada acontecia. Continuou a ir para a montanha todos os dias e acabou por esquecer a ideia de que do outro lado haveria alguém... até ao dia que o vento trouxe um olá. Uma voz feminina ecoou pela montanha fora. Olhou em sua volta procurando de onde vinha aquele olá, levantando-se de forma apressada em busca da origem. Sem sucesso. Esperou que voltasse a fazer-se ouvir. Em vão. Desistiu de procurar e assumiu que tinha sido a sua imaginação. Talvez estivesse a ficar louco e não deveria voltar mais ali. O sol começava a pôr-se e o rapaz partiu da montanha com esse pensamento na sua cabeça.
No dia seguinte voltou à montanha de manhã cedo. Faltou à escola para ir para lá. Tinha a certeza que aquele olá não tinha sido da sua imaginação, por mais que não tivesse achado a origem. Quando chegou novamente à montanha ouviu novamente o mesmo olá mas, desta vez, fez algo que não tinha feito anteriormente: olhou em frente. Conseguia ver do outro lado da montanha uma rapariga. A distância entre os dois não permitia tirar muitas conclusões sobre o seu aspecto, além de tinha um cabelo grande e castanho, devia ter mais ou menos a idade dele e, tal como ele, estava sentada na relva, a olhar para o horizonte.
- Será que ela me consegue ver? - pensou, corando ligeiramente de seguida.
Pensou o que faria se a rapariga gritasse olá novamente. Será que deveria responder? Antes que pudesse pensar mais a voz da rapariga fez-se ouvir. Um olá ecoou por toda a montanha novamente. O rapaz levantou-se, encheu o peito de ar e respondeu, também com um olá. Ficou nervoso. Será que ela iria responder? O mais provável era assustar-se e ir embora dali. Mas não foi isso que aconteceu. Logo de seguida a rapariga fez ouvir outro olá, ao que o rapaz respondeu com o mesmo. Ficaram nisso durante o resto da manhã, até que ela se levantou e se foi embora, fazendo ecoar um adeus. O rapaz não respondeu. Estava curioso. Queria saber quem ela era. O que fazia ali. Porquê? Quando? Tantas perguntas e nenhuma resposta. Não podia fazer nada. Pegou na bicicleta e desceu a montanha. Não foi às aulas de manhã mas ia aproveitar para ir às da tarde. Não acreditava que a rapariga fosse aparecer, portanto não estava ali a fazer nada. No dia seguinte voltaria lá e ela estaria lá. Ele tinha a certeza.
Ainda era cedo, o sol começava a mostrar-se e já o rapaz estava em cima da montanha. A mota tinha voltado da oficina portanto o tempo que demorava a fazer o caminho até ali era menor. Deitou-se na relva e, pela primeira vez, não conseguia pensar direito. Não conseguia formar um raciocínio sem que este fosse quebrado, como uma ponte mal construída que desaba durante a sua inauguração. Ali, deitado, acabou por adormecer. Sonhou que a rapariga não vinha, nem naquele dia nem em nenhum outro. Sonhou que era tudo uma projecção dos seus desejos interiores e que não passava de uma ilusão. Acordou em sobressalto e levantou-se, com o coração, para ver a montanha da frente. Ela estava lá e não demorou muito a fazer-se ouvir.
- Olá! - gritou ela, fazendo a sua voz ecoar por todo o lado. Um grupo de pássaros levantou voo, como se estivessem assustados, quando o eco terminou.
- Olá! - respondeu o rapaz, desejando que este dia não fosse como o anterior, em que a conversa não passou disso.
- Pensei que hoje não ias responder. Pensei que tivesses morrido.
- Desculpa... acho eu.
- Não faz mal.
- Como é que te chamas? - perguntou ele de forma hesitante enquanto olhava para o lado para disfarçar o facto de estar a corar. Pensou para si mesmo porque estava a disfarçar se ela não iria conseguir ver.
- Maria.
- Eu chamo-me Leonardo.
- Leonardo... é um nome giro.
- É um nome como todos os outros.
- Ou isso.
Continuaram a falar todos as manhãs. Ela contou-lhe que faltava frequentemente de manhã à escola para ir para ali porque era um sítio calmo e não suportava o stress da cidade. Tornaram-se amigos. Conheceram-se de forma bizarra mas no entanto era como se já se tivessem conhecido antes. Talvez noutra vida. Talvez fosse apenas destino. Um dia ela desafiou-o a atravessar a velha ponte de madeira que unia as duas montanhas. Ele não o fez. Sabia que era morte certa. Era uma ponte velha, devia ser mais velha que os seus pais e abanava por todos os lados com o vento. Ela disse que ainda bem que ele não o fez. Era um desafio. Queria ver se ele era um idiota ou se era mesmo inteligente, como ela pensava. Riram-se os dois, ficando com um sorriso no rosto. Quando o sol se punha, iam-se embora. No entanto, naquele dia, ele não conseguia parar de pensar nela. Mesmo de noite tinha vontade de ficar ali sentado a falar com ela. Sentia-se bem. O vento podia ser gelado e a distância entre os dois era considerável, mas era como se um calor humano que nenhum dos dois conseguia ver os ligasse. Começou a questionar onde estava a lógica disso. Ele nunca a viu. Não podia estar com ela. Nunca iria acontecer. Escolher este caminho apenas o ia tornar miserável. Ia magoar-se. Ia cair num buraco. No dia seguinte não foi à montanha. Ficou a dormir. Ou a fingir que dormia, tanto faz. Durante vinte e quatro horas ficou debaixo dos lençóis, incapaz de decidir o que deveria fazer. Os pais perguntaram-lhe se ele estava doente, ao que ele respondeu que não tinham nada com que se preocupar, que estava só cansado. Durante a semana seguinte não foi à montanha, nem foi à escola. Caminhou pela cidade, todos os dias, almoçando num restaurante e passando as tardes num banco de jardim, a brincar com um cão abandonado que por lá parava. A rapariga ficou sozinha, cada um desses dias. O olá não chegava ao destino. Propagava-se pelo ar, sem forças para chegar a onde ela queria. Ao que ela mais desejava. Sentia-se sozinha. Tinha confiado nele e ele tinha-a deixado. Porquê? Já não se ouvia um olá a ecoar no ar. Ouvia-se um porquê. Um porquê molhado pelas suas lágrimas. Tinha a sensação que algo não estava bem e não sabia o que. Mas queria saber. Desejava com todas as suas forças saber. Ela não tinha mais ninguém em quem confiar. Estava sozinha. Quando deu por si estava, involuntariamente, em frente à velha ponte de madeira. Devia atravessa-la? Iria morrer, com quase toda a certeza. A ponte não oferecia segurança nenhuma e tinha aspecto de que ao mínimo peso que lhe fosse colocado em cima que iria desabar. Ela fechou os olhos. Não queria racionalizar. Não queria procurar lógica. Queria deixar-se levar pelo seu coração, ponto final. Foi o que fez: fechou os olhos e, quando deu por si, corria pela ponte fora. A madeira da ponte rangia violentamente, ameaçando quebrar a qualquer segundo mas a rapariga não parou num único momento. Quando chegou ao outro lado abriu os olhos e respirou fundo. Passou as mãos pelo corpo para ter a certeza que estava viva. Desceu a montanha e entrou na cidade, em busca de Leonardo. Em busca da pessoa em que podia confiar. Mas como é que o ia encontrar? A única coisa que sabia dele é que tinha o cabelo preto... nada mais. Deviam haver centenas, milhares de pessoas com o cabelo preto naquela cidade. Andou pela cidade, na esperança de que algum sinal divino a orientasse, mas sem sucesso. Comprou uma sandes num vendedor ambulante e sentou-se num banco de jardim, ao lado de um rapaz que fazia festas num cão vadio. Meteu as mãos na cara e chorou. Chorou porque tinha encontrado alguém em quem podia confiar, alguém de quem gostava e tinha perdido essa pessoa. O seu choro foi interrompido pelas palavras do rapaz ao cão.
- Sabes cão, eu tal e qual como tu sou vadio. Não tenho um destino certo. Uma casa é um sítio onde alguém espera por nós, certo? Então acho que posso dizer que, como tu, não tenho casa. Provavelmente perguntar-me-ias pelos meus pais. Não tenho propriamente uma boa relação com eles. Aliás, nem tenho uma relação com eles. Muitas das vezes nem nos cruzamos, quando eles chegam já eu estou a dormir. Quando era uma criança as coisas eram diferentes... gostava de ser criança, só por isso. Talvez se eu fosse uma criança ainda, as coisas seriam diferentes. Quando somos crianças a fórmula para atingir a felicidade é muito mais simples. Agora... agora é tudo mais complicado. Não é que eu não tenha amigos. Eu tenho-os. Diria mais que são colegas, mas já que o sentido da palavra amigo hoje em dia está tão banalizada... porque não? Não é uma maré contra a qual eu queria remar, seja como for. Mas, ainda assim, não consigo confiar plenamente neles... só uma vez na minha vida consegui confiar numa pessoa e queres saber a melhor? Nunca lhe meti os olhos em cima. Quer dizer, meti, mas foi ao longe. Muito longe. Tínhamos um vale entre nós. Um vale com um rio furioso. Se as pedras não dessem conta de quem ali caísse, o rio faria o favor de terminar o serviço. Nunca a vou ver na vida. Era impossível. Achei que continuar a ir àquela montanha para falar com ela só iria alimentar este sentimento que cresceu no meu coração e isso só me traria miséria mas, no entanto, este caminho também me trouxe tristeza. Será que há algum caminho que não a traga? A tristeza, é ao que me refiro. Se houvesse um caminho que trouxesse aquela rapariga, era esse que eu escolheria.
Quando terminou o discurso ao cão o rapaz pegou num pequeno ramo e escreveu na areia do chão um M.
- É um M de Maria. - disse ele ao cão. - Daqui a pouco o vento começará a soprar e irá apagar este M que eu fiz aqui no chão. Será que é o que irá acontecer com o que eu sinto? Não sei. Nem sei se é isso que quero.
A rapariga começou a chorar. O choro da rapariga chamou a atenção do rapaz, que até ali tinha estado concentrado na sua conversa com o cão, ou melhor, no seu monólogo.
- Estás bem?
- És um idiota, Leonardo.
O rapaz ficou confuso, mas não demorou muito a perceber quem ela era. A rapariga abraçou-o e chorou. Chorou de alegria. Alegria porque o tinha encontrado. No meio do abraço e das lágrimas o cão partiu. Afinal de contas, era um cão vadio, não pertencia ali. Na sua mente vagueava o pensamento de que, se calhar, também para ele havia alguém que esperava por ele. Se calhar...

2 comentários:

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  2. Leonardo <3
    Acho que já sabes o que penso sobre este, não é? : )
    Gostei MESMO, mesmo muito, meteoro!

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