sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Um céu distante

A cidade ardia à sua frente. Ele, agarrando o urso de peluche, olhava atentamente sem esboçar uma única emoção. Os pássaros voavam em bando, apressados em fugir, em contraste com as pessoas. Estas lutavam cada uma por si. Era a lei do mais forte. Na verdade, era apenas uma lei de quem conseguia sobreviver mais um segundo. Todas acabavam por morrer. Os seus gritos, esses sim, tornavam-as imortais na mente do rapaz, gritos esses que lhe iam ficando cicatrizados na mente. Durante horas observou aquele cenário, sem reagir, sem pestanejar. No fim, quando o tempo voltou a fluir de forma regular, só restavam cinzas. Da cidade apenas saiam militares. Um deles abordou-o.
- Não podes ficar aqui. - disse de forma autoritária.
- Tenho de ficar. - respondeu o rapaz num tom sereno. O militar agarrou o rapaz com o objectivo de forçá-lo a sair daquele lugar mas o rapaz usou os seus instintos mais animais para se soltar.
- Porque é que insistes em ficar aqui? Já não há nada aqui. Só cinzas. - disse o militar, apelando à consciência da criança.
- Eu tenho oito anos. Desde o primeiro dia que me lembro de ter feito o meu primeiro pensamento que desejei sair daquela cidade. Desejei que ela desaparecesse do mapa. Assim, eu poderia ir para outro sítio. Detestava-a com todas as minhas forças. Hoje, ela ardeu. Já reparou senhor militar?
- Reparei? No que?
- Na cidade. Ela ardeu, mas ainda ali está. Os seus contornos são notórios. Consigo vê-la. É como se estivesse a gozar comigo. Ardeu e com ela levou toda a gente que lá vivia, menos eu. Como se fosse um jogo doentio no qual me deixou escapar para gozar comigo. As cinzas continuam lá. As pessoas continuam lá. Ela ainda existe. Sem vida, mas existe.
- Isso é muito bonito, mas esta zona tem de ser evacuada. Vamos.
- Não posso. Tenho de esperar por ela. Ela prometeu que vinha ter comigo. Ela disse para eu correr, correr sempre em frente, não parar e não olhar para trás. Se eu o fizesse, ela prometeu que estaria do outro lado à minha espera e seriamos amigos durante muito tempo. Quando eu aqui cheguei ela não estava. Percebi que ela apenas queria que eu corresse. No entanto, ela prometeu. Porque é que ela haveria de me mentir? Ela acreditava num sítio chamado paraíso. Ou pelos menos queria acreditar. Dizia-me que era para onde as pessoas iam quando morriam. Porque é que ela me diria para fugir e morreria sozinha? Eu nunca seria feliz assim. Nem ela. Tenho a certeza. Ou morreríamos os dois ou viveríamos os dois. Não há outra opção. É por isso que eu tenho de ficar aqui e esperar por ela. Se ela aparecer e eu não estiver aqui ela vai achar que eu olhei para trás e morri. Ela sabe que o mesmo se aplica a mim. Se ela não aparecer eu vou achar que ela morreu e não cumpriu a promessa que fez. Em condições normais eu deixaria de gostar dela. Não gosto de pessoas mentirosas. Mas ela é minha amiga. Não é suposto as coisas serem normais. Certo senhor militar? - perguntou o rapaz esboçando um sorriso. O sorriso mais ingénuo que aquele militar havia visto na vida.
- Faz o que quiseres.
O militar virou costas e foi-se embora. Desistiu perante a a vontade inamovível da criança. Ela, tão nova, tão frágil, tão fraca, ele, um militar com anos de treino, ginásio e foi ele que saiu derrotado. Durante um segundo sentiu-se fraco. Não tinha sido capaz de salvar aquela criança. Mas ele no fundo sabia que faria o mesmo. Ele esperaria. Esperaria para sempre.
- Quantos sobreviventes? - perguntou uma voz pelo intercomunicador.
O militar hesitou durante um bocado e olhou para o rapaz. Os pássaros de penas pretas voltavam pouco a pouco à única árvore que sobreviveu ao incêndio. Um cão vadio sentara-se ao lado do rapaz.
- Nenhum, comandante. Nenhum.

Do you know? The speed at which cherry blossoms fall... 5 centimeters per second. At what speed must I live to be able to see you again?

2 comentários:

  1. Lindo, lindo, lindo!
    Nunca me desiludes, meteoro!

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  2. Muito bom! O miúdo tem um grande vocabulário para a idade dele... mas pronto, não deixa de ser um bom texto. ;D
    Gostei e vou seguir!

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