sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Um céu distante

A cidade ardia à sua frente. Ele, agarrando o urso de peluche, olhava atentamente sem esboçar uma única emoção. Os pássaros voavam em bando, apressados em fugir, em contraste com as pessoas. Estas lutavam cada uma por si. Era a lei do mais forte. Na verdade, era apenas uma lei de quem conseguia sobreviver mais um segundo. Todas acabavam por morrer. Os seus gritos, esses sim, tornavam-as imortais na mente do rapaz, gritos esses que lhe iam ficando cicatrizados na mente. Durante horas observou aquele cenário, sem reagir, sem pestanejar. No fim, quando o tempo voltou a fluir de forma regular, só restavam cinzas. Da cidade apenas saiam militares. Um deles abordou-o.
- Não podes ficar aqui. - disse de forma autoritária.
- Tenho de ficar. - respondeu o rapaz num tom sereno. O militar agarrou o rapaz com o objectivo de forçá-lo a sair daquele lugar mas o rapaz usou os seus instintos mais animais para se soltar.
- Porque é que insistes em ficar aqui? Já não há nada aqui. Só cinzas. - disse o militar, apelando à consciência da criança.
- Eu tenho oito anos. Desde o primeiro dia que me lembro de ter feito o meu primeiro pensamento que desejei sair daquela cidade. Desejei que ela desaparecesse do mapa. Assim, eu poderia ir para outro sítio. Detestava-a com todas as minhas forças. Hoje, ela ardeu. Já reparou senhor militar?
- Reparei? No que?
- Na cidade. Ela ardeu, mas ainda ali está. Os seus contornos são notórios. Consigo vê-la. É como se estivesse a gozar comigo. Ardeu e com ela levou toda a gente que lá vivia, menos eu. Como se fosse um jogo doentio no qual me deixou escapar para gozar comigo. As cinzas continuam lá. As pessoas continuam lá. Ela ainda existe. Sem vida, mas existe.
- Isso é muito bonito, mas esta zona tem de ser evacuada. Vamos.
- Não posso. Tenho de esperar por ela. Ela prometeu que vinha ter comigo. Ela disse para eu correr, correr sempre em frente, não parar e não olhar para trás. Se eu o fizesse, ela prometeu que estaria do outro lado à minha espera e seriamos amigos durante muito tempo. Quando eu aqui cheguei ela não estava. Percebi que ela apenas queria que eu corresse. No entanto, ela prometeu. Porque é que ela haveria de me mentir? Ela acreditava num sítio chamado paraíso. Ou pelos menos queria acreditar. Dizia-me que era para onde as pessoas iam quando morriam. Porque é que ela me diria para fugir e morreria sozinha? Eu nunca seria feliz assim. Nem ela. Tenho a certeza. Ou morreríamos os dois ou viveríamos os dois. Não há outra opção. É por isso que eu tenho de ficar aqui e esperar por ela. Se ela aparecer e eu não estiver aqui ela vai achar que eu olhei para trás e morri. Ela sabe que o mesmo se aplica a mim. Se ela não aparecer eu vou achar que ela morreu e não cumpriu a promessa que fez. Em condições normais eu deixaria de gostar dela. Não gosto de pessoas mentirosas. Mas ela é minha amiga. Não é suposto as coisas serem normais. Certo senhor militar? - perguntou o rapaz esboçando um sorriso. O sorriso mais ingénuo que aquele militar havia visto na vida.
- Faz o que quiseres.
O militar virou costas e foi-se embora. Desistiu perante a a vontade inamovível da criança. Ela, tão nova, tão frágil, tão fraca, ele, um militar com anos de treino, ginásio e foi ele que saiu derrotado. Durante um segundo sentiu-se fraco. Não tinha sido capaz de salvar aquela criança. Mas ele no fundo sabia que faria o mesmo. Ele esperaria. Esperaria para sempre.
- Quantos sobreviventes? - perguntou uma voz pelo intercomunicador.
O militar hesitou durante um bocado e olhou para o rapaz. Os pássaros de penas pretas voltavam pouco a pouco à única árvore que sobreviveu ao incêndio. Um cão vadio sentara-se ao lado do rapaz.
- Nenhum, comandante. Nenhum.

Do you know? The speed at which cherry blossoms fall... 5 centimeters per second. At what speed must I live to be able to see you again?

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Mil Metros de Altitude

Não tive tempo de reler para ver se tinha erros, portanto peço desculpa caso existam. Espero que gostem.



Era Primavera. Finalmente o Inverno tinha adormecido, permitindo a quem dele se abrigou acordar. As árvores voltavam a vestir-se, alguns animais, como o esquilo, davam ares da sua graça e a neve derretia. Fora isso era um dia como todos os outros, uma rotina para cumprir e nada mais, sendo o momento de chegar a casa o menos aguardado do dia. Quando o fazia sentia-se sozinho. Os pais trabalhavam até ao momento em que o sol se punha e ele acabava sempre por ficar sozinho naquela casa enorme e ficar ali deprimia-o. Geralmente acabava por ir a casa deixar apenas os livros da escola e ia para a cidade fazer algo. Qualquer coisa era melhor do que ficar sentado naquela casa vazia. Ficar num jardim a olhar para o céu, passar pela livraria e ver quanto tempo demorava até ao dono, já com alguma idade, dizer que aquilo não era uma biblioteca e que se ele queria ler o livro teria de o comprar, ver as lojas ou simplesmente andar. Mas naquele dia nem isso lhe apetecia. Estava farto de ver as mesmas nuvens, o dono da livraria já tinha desistido de lhe dizer que aquilo não era uma biblioteca e andar em ruas apinhadas de gente, numa verdadeira competição de quem se consegue esquivar mais rapidamente, não era propriamente o seu desporto favorito.
A norte da cidade havia uma montanha. Quando olhava para lá era invadido por memórias de quando os pais o levavam lá a passear. Era um sitio lindo e calmo. Lembra-se particularmente de quando o pai lhe disse que se há guerras no mundo é porque as pessoas nunca viram aquele lugar, que se mesmo depois de o ver ainda fossem capazes de continuar ou criar uma nova guerra era porque o mundo estava mesmo condenado. Na altura não entendeu bem o que aquilo queria dizer, era uma criança, portanto limitou-se a responder com um sorriso. No entanto, nunca se esqueceu daquela frase. Passou por casa para ir buscar a bicicleta e pedalou até à montanha. Uma viagem de quinze minutos, mais sessenta para chegar até ao ponto mais alto. Encostou a cansada bicicleta a uma árvore e deitou-se na relva. Deu por si a observar as nuvens e a associa-las a animais. Era como se ali as nuvens fossem diferentes das vistas da cidade. Aquelas pareciam genuínas. As da cidade pareciam forjadas por uma qualquer fábrica. Pareciam tristes. Quando se fartou de observar as nuvens sentou-se e ficou a olhar para o horizonte. Dali sentia que podia ver tudo. A cidade, uma verdadeira metrópole, parecia uma colónia de formigas. Pessoas cheias de dinheiro, fama e poder dali nem eram visíveis. Ficou a pensar nisso. Até onde é que a fama delas chegava? Se não as conseguia ver dali devia ser porque não eram assim tão grandes. No encadeamento desse pensamento lembrou-se que as pessoas quando se referem a montanhas é para as utilizar como metáfora para referir problemas ou dificuldades.
- Porquê? Uma montanha é um sítio tão calmo. Não incomoda ninguém. As pessoas têm assim tanta necessidade de tocar no que está do outro lado? Não lhes chega poderem ver o que lá está e saciarem assim a sua curiosidade? - pensou para si. Lembrou-se então do que estava a pensar anteriormente. Concluiu então que as montanhas eram metáfora para problema ou dificuldade porque as pessoas se sentiam pequenas perante elas. Sentiam-se ameaçadas. Todo aquele poder social e monetário que tinham era ridicularizado perante a imponência de uma montanha. Foi isso que concluiu e foi nisso que passou a acreditar. Passou a gostar ainda mais daquela montanha.
Tornou-se parte da rotina ir à montanha. Passou a ter curiosidade pela montanha que ficava em frente àquela em que ele costumava estar, dividida por um vale com um enorme e furioso rio. Pareciam espelho uma da outra. Todos os dias se questionava se, como ele, alguém estaria do outro lado, deitado na relva, a olhar para o ar. Deu por si todos os dias sentado perto da mesma árvore a olhar para a outra montanha. Pedia com todas as forças que do outro lado estivesse alguém igual a ele. Alguém que lhe fizesse companhia. No entanto, nada acontecia. Continuou a ir para a montanha todos os dias e acabou por esquecer a ideia de que do outro lado haveria alguém... até ao dia que o vento trouxe um olá. Uma voz feminina ecoou pela montanha fora. Olhou em sua volta procurando de onde vinha aquele olá, levantando-se de forma apressada em busca da origem. Sem sucesso. Esperou que voltasse a fazer-se ouvir. Em vão. Desistiu de procurar e assumiu que tinha sido a sua imaginação. Talvez estivesse a ficar louco e não deveria voltar mais ali. O sol começava a pôr-se e o rapaz partiu da montanha com esse pensamento na sua cabeça.
No dia seguinte voltou à montanha de manhã cedo. Faltou à escola para ir para lá. Tinha a certeza que aquele olá não tinha sido da sua imaginação, por mais que não tivesse achado a origem. Quando chegou novamente à montanha ouviu novamente o mesmo olá mas, desta vez, fez algo que não tinha feito anteriormente: olhou em frente. Conseguia ver do outro lado da montanha uma rapariga. A distância entre os dois não permitia tirar muitas conclusões sobre o seu aspecto, além de tinha um cabelo grande e castanho, devia ter mais ou menos a idade dele e, tal como ele, estava sentada na relva, a olhar para o horizonte.
- Será que ela me consegue ver? - pensou, corando ligeiramente de seguida.
Pensou o que faria se a rapariga gritasse olá novamente. Será que deveria responder? Antes que pudesse pensar mais a voz da rapariga fez-se ouvir. Um olá ecoou por toda a montanha novamente. O rapaz levantou-se, encheu o peito de ar e respondeu, também com um olá. Ficou nervoso. Será que ela iria responder? O mais provável era assustar-se e ir embora dali. Mas não foi isso que aconteceu. Logo de seguida a rapariga fez ouvir outro olá, ao que o rapaz respondeu com o mesmo. Ficaram nisso durante o resto da manhã, até que ela se levantou e se foi embora, fazendo ecoar um adeus. O rapaz não respondeu. Estava curioso. Queria saber quem ela era. O que fazia ali. Porquê? Quando? Tantas perguntas e nenhuma resposta. Não podia fazer nada. Pegou na bicicleta e desceu a montanha. Não foi às aulas de manhã mas ia aproveitar para ir às da tarde. Não acreditava que a rapariga fosse aparecer, portanto não estava ali a fazer nada. No dia seguinte voltaria lá e ela estaria lá. Ele tinha a certeza.
Ainda era cedo, o sol começava a mostrar-se e já o rapaz estava em cima da montanha. A mota tinha voltado da oficina portanto o tempo que demorava a fazer o caminho até ali era menor. Deitou-se na relva e, pela primeira vez, não conseguia pensar direito. Não conseguia formar um raciocínio sem que este fosse quebrado, como uma ponte mal construída que desaba durante a sua inauguração. Ali, deitado, acabou por adormecer. Sonhou que a rapariga não vinha, nem naquele dia nem em nenhum outro. Sonhou que era tudo uma projecção dos seus desejos interiores e que não passava de uma ilusão. Acordou em sobressalto e levantou-se, com o coração, para ver a montanha da frente. Ela estava lá e não demorou muito a fazer-se ouvir.
- Olá! - gritou ela, fazendo a sua voz ecoar por todo o lado. Um grupo de pássaros levantou voo, como se estivessem assustados, quando o eco terminou.
- Olá! - respondeu o rapaz, desejando que este dia não fosse como o anterior, em que a conversa não passou disso.
- Pensei que hoje não ias responder. Pensei que tivesses morrido.
- Desculpa... acho eu.
- Não faz mal.
- Como é que te chamas? - perguntou ele de forma hesitante enquanto olhava para o lado para disfarçar o facto de estar a corar. Pensou para si mesmo porque estava a disfarçar se ela não iria conseguir ver.
- Maria.
- Eu chamo-me Leonardo.
- Leonardo... é um nome giro.
- É um nome como todos os outros.
- Ou isso.
Continuaram a falar todos as manhãs. Ela contou-lhe que faltava frequentemente de manhã à escola para ir para ali porque era um sítio calmo e não suportava o stress da cidade. Tornaram-se amigos. Conheceram-se de forma bizarra mas no entanto era como se já se tivessem conhecido antes. Talvez noutra vida. Talvez fosse apenas destino. Um dia ela desafiou-o a atravessar a velha ponte de madeira que unia as duas montanhas. Ele não o fez. Sabia que era morte certa. Era uma ponte velha, devia ser mais velha que os seus pais e abanava por todos os lados com o vento. Ela disse que ainda bem que ele não o fez. Era um desafio. Queria ver se ele era um idiota ou se era mesmo inteligente, como ela pensava. Riram-se os dois, ficando com um sorriso no rosto. Quando o sol se punha, iam-se embora. No entanto, naquele dia, ele não conseguia parar de pensar nela. Mesmo de noite tinha vontade de ficar ali sentado a falar com ela. Sentia-se bem. O vento podia ser gelado e a distância entre os dois era considerável, mas era como se um calor humano que nenhum dos dois conseguia ver os ligasse. Começou a questionar onde estava a lógica disso. Ele nunca a viu. Não podia estar com ela. Nunca iria acontecer. Escolher este caminho apenas o ia tornar miserável. Ia magoar-se. Ia cair num buraco. No dia seguinte não foi à montanha. Ficou a dormir. Ou a fingir que dormia, tanto faz. Durante vinte e quatro horas ficou debaixo dos lençóis, incapaz de decidir o que deveria fazer. Os pais perguntaram-lhe se ele estava doente, ao que ele respondeu que não tinham nada com que se preocupar, que estava só cansado. Durante a semana seguinte não foi à montanha, nem foi à escola. Caminhou pela cidade, todos os dias, almoçando num restaurante e passando as tardes num banco de jardim, a brincar com um cão abandonado que por lá parava. A rapariga ficou sozinha, cada um desses dias. O olá não chegava ao destino. Propagava-se pelo ar, sem forças para chegar a onde ela queria. Ao que ela mais desejava. Sentia-se sozinha. Tinha confiado nele e ele tinha-a deixado. Porquê? Já não se ouvia um olá a ecoar no ar. Ouvia-se um porquê. Um porquê molhado pelas suas lágrimas. Tinha a sensação que algo não estava bem e não sabia o que. Mas queria saber. Desejava com todas as suas forças saber. Ela não tinha mais ninguém em quem confiar. Estava sozinha. Quando deu por si estava, involuntariamente, em frente à velha ponte de madeira. Devia atravessa-la? Iria morrer, com quase toda a certeza. A ponte não oferecia segurança nenhuma e tinha aspecto de que ao mínimo peso que lhe fosse colocado em cima que iria desabar. Ela fechou os olhos. Não queria racionalizar. Não queria procurar lógica. Queria deixar-se levar pelo seu coração, ponto final. Foi o que fez: fechou os olhos e, quando deu por si, corria pela ponte fora. A madeira da ponte rangia violentamente, ameaçando quebrar a qualquer segundo mas a rapariga não parou num único momento. Quando chegou ao outro lado abriu os olhos e respirou fundo. Passou as mãos pelo corpo para ter a certeza que estava viva. Desceu a montanha e entrou na cidade, em busca de Leonardo. Em busca da pessoa em que podia confiar. Mas como é que o ia encontrar? A única coisa que sabia dele é que tinha o cabelo preto... nada mais. Deviam haver centenas, milhares de pessoas com o cabelo preto naquela cidade. Andou pela cidade, na esperança de que algum sinal divino a orientasse, mas sem sucesso. Comprou uma sandes num vendedor ambulante e sentou-se num banco de jardim, ao lado de um rapaz que fazia festas num cão vadio. Meteu as mãos na cara e chorou. Chorou porque tinha encontrado alguém em quem podia confiar, alguém de quem gostava e tinha perdido essa pessoa. O seu choro foi interrompido pelas palavras do rapaz ao cão.
- Sabes cão, eu tal e qual como tu sou vadio. Não tenho um destino certo. Uma casa é um sítio onde alguém espera por nós, certo? Então acho que posso dizer que, como tu, não tenho casa. Provavelmente perguntar-me-ias pelos meus pais. Não tenho propriamente uma boa relação com eles. Aliás, nem tenho uma relação com eles. Muitas das vezes nem nos cruzamos, quando eles chegam já eu estou a dormir. Quando era uma criança as coisas eram diferentes... gostava de ser criança, só por isso. Talvez se eu fosse uma criança ainda, as coisas seriam diferentes. Quando somos crianças a fórmula para atingir a felicidade é muito mais simples. Agora... agora é tudo mais complicado. Não é que eu não tenha amigos. Eu tenho-os. Diria mais que são colegas, mas já que o sentido da palavra amigo hoje em dia está tão banalizada... porque não? Não é uma maré contra a qual eu queria remar, seja como for. Mas, ainda assim, não consigo confiar plenamente neles... só uma vez na minha vida consegui confiar numa pessoa e queres saber a melhor? Nunca lhe meti os olhos em cima. Quer dizer, meti, mas foi ao longe. Muito longe. Tínhamos um vale entre nós. Um vale com um rio furioso. Se as pedras não dessem conta de quem ali caísse, o rio faria o favor de terminar o serviço. Nunca a vou ver na vida. Era impossível. Achei que continuar a ir àquela montanha para falar com ela só iria alimentar este sentimento que cresceu no meu coração e isso só me traria miséria mas, no entanto, este caminho também me trouxe tristeza. Será que há algum caminho que não a traga? A tristeza, é ao que me refiro. Se houvesse um caminho que trouxesse aquela rapariga, era esse que eu escolheria.
Quando terminou o discurso ao cão o rapaz pegou num pequeno ramo e escreveu na areia do chão um M.
- É um M de Maria. - disse ele ao cão. - Daqui a pouco o vento começará a soprar e irá apagar este M que eu fiz aqui no chão. Será que é o que irá acontecer com o que eu sinto? Não sei. Nem sei se é isso que quero.
A rapariga começou a chorar. O choro da rapariga chamou a atenção do rapaz, que até ali tinha estado concentrado na sua conversa com o cão, ou melhor, no seu monólogo.
- Estás bem?
- És um idiota, Leonardo.
O rapaz ficou confuso, mas não demorou muito a perceber quem ela era. A rapariga abraçou-o e chorou. Chorou de alegria. Alegria porque o tinha encontrado. No meio do abraço e das lágrimas o cão partiu. Afinal de contas, era um cão vadio, não pertencia ali. Na sua mente vagueava o pensamento de que, se calhar, também para ele havia alguém que esperava por ele. Se calhar...

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Mãe, como é que nasceram as estrelas?

Acho que já todos, pelo menos uma vez, fizemos esta pergunta.Foi daí que nasceu o texto nada cliché que se segue.

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«Mãe, de onde vieram as estrelas?» perguntou a criança irrequieta. Sabia bem que era a sua hora de dormir mas não tinha vontade. Atormentava-lhe a ingénua mente as estrelas que iluminavam o seu quarto através da clarabóia que tinha por cima da cama. A mãe, apanhada de surpresa pela questão, sentou-se num cadeirão, perto da cama, em silêncio. A forma como passava a mão pelos longos cabelos dourados fez a criança perceber que ela estava a pensar. Era o gesto habitual que a mãe fazia enquanto pensava.
- Bom, não vale a pena tentar escapar-me, pois não? Irias insistir de qualquer maneira e se eu não contasse hoje teria de contar amanhã. É uma história longa, é bom que não adormeças antes do fim! - respondeu a mãe à pergunta da sua filha. Num ápice a criança sentou-se na cama, com os seus olhos verdes bem abertos e fixados nos da mãe.
- Tudo começou há alguns anos. Não te sei dizer ao certo quantos, mas os suficientes para não seres nascida na altura. Naquela altura as noites eram assustadoras. No céu apenas a Lua se fazia mostrar. Mas nem sempre a Lua lá estava. Havia dias que a Lua não aparecia e essas noites eram as piores. O mundo ficava mergulhado numa escuridão aterradora. Era como se, durante algumas horas, todos fossemos cegos e tudo o que restasse fosse o nosso tacto, a audição, o paladar e o olfacto. Com o amanhecer, amanheciam todos os acontecimentos bizarros da noite. Mortes e raptos eram apenas os mais frequentes. Principalmente a crianças, que no escuro perdiam a noção de onde estavam os seus pais e acabavam por ir parar às mãos erradas. Raros eram os casos em que voltavam a aparecer. Enquanto tudo isto acontecia na Terra, no Espaço as coisas eram diferentes. Contam as histórias que no Espaço, sentado em cada Lua, de cada planeta, havia um rapaz. Um rapaz sem nome. Um rapaz sem nada. Um rapaz do espaço. A Terra não era excepção, também tinha o seu Rapaz do Espaço. Era um Rapaz pequeno, com roupas brancas e um cabelo cinzento que lhe tapava os olhos. Consta que ele não gostava de ver o que acontecia na Terra. Não gostava do mal, da ganância, da guerra. Portanto, ele não fazia nada. Ficava apenas sentado na Lua, com os olhos tapados pelo seu cabelo, agarrado aos joelhos. Durante muito tempo assim foi. Ele apenas fazia algo quando sentia que o equilíbrio do planeta estava em perigo, caso contrario ficaria no seu sítio, sentado, em paz. Preferia assim. Passado um período de tempo indeterminado o Rapaz afastou o cabelo de um dos olhos. Ele sabia que se tinha passado muito tempo desde a última vez que o tinha feito. Desta vez não iria ver pessoas a carregar blocos de pedra enormes enquanto eram chicoteadas, pelo menos era o que ele queria acreditar. Quando começou a olhar para a Terra fixamente viu que nada tinha mudado. As pessoas continuavam a pisar-se sem pudor, ignorando o que o outro pudesse estar a sentir. As pessoas ainda matavam. Não morriam de exaustão ou sede enquanto carregavam blocos de cimento, era certo, mas morriam fuzilados por armas de fogo, queimadas vivas ou em jogos doentios. Sentiu as forças vitais fugirem-lhe enquanto observou um soldado, provavelmente um general, ordenar um grupo de condenados a atravessar um rio recheado de minas terrestres prometendo-lhes que os que voltassem seriam soltos. Dos oito que partiram, só dois voltaram. Esses dois foram abatidos a tiro no momento em que concluíram a travessia. Quase perdeu a esperança. Pensou para si próprio que, já que tinha arriscado, não iria desistir ali e iria ver o resto do planeta também. Enquanto via o planeta os seus olhos acabaram por ficar presos numa rapariga. Tinha olhos verdes, como uma esmeralda, e um cabelo loiro. Ficou a observa-la durante algum tempo. Sentiu-se esquisito por o estar a fazer. Será que ela sabia que ele estava a observa-la? Provavelmente não. Até era melhor assim. Se soubesse, iria acabar por achar tudo aquilo bastante assustador. Como a noite. A rapariga caminhava rumo a algum sítio com um grupo de raparigas que, pouco a pouco, iam ficando pelo caminho, como uma fileira de soldados que vai gradualmente perdendo os seus membros durante o decorrer da guerra. Chegado a um certo ponto, a rapariga seguia sozinha. O Sol no horizonte começava a fechar os olhos e a rapariga começava a acelerar o passo. Sabia que aquilo era um aviso de que dentro de algum tempo a visão seria um sentido que se tornaria inútil. O Rapaz apercebeu-se de dois rapazes que seguiam a rapariga. Consoante o ritmo da sua caminhada se alterava, o deles também. Ingenuamente o Rapaz ficou quieto a observar. Assumiu que seria apenas uma casualidade ou dois amigos na brincadeira. Essa ideia manteve-se até ao momento que os dois rapazes abordaram a rapariga, tentando tirar-lhe a mala enquanto a ameaçavam com uma arma branca. O Rapaz levantou-se em pânico. Aquela sensação de paz e calma que a rapariga lhe transmitia estava ameaçada. Aquela rapariga que lhe estava a oferecer tantas coisas novas de uma forma tão simples estava ameaçada e ele não sabia o que fazer. Pela primeira vez na vida não conseguia pensar. Não conseguia desenvolver mais que uma vogal ou uma consoante na sua cabeça. Nesse momento apareceu um senhor a seu lado. Um senhor com uma certa idade, também vestido de branco e com uma bengala preta com detalhes em dourado. Pediu ao Rapaz que se sentasse, que a rapariga estava segura, ele havia parado o tempo no planeta. O Rapaz sentiu necessidade de confirmar com os seus próprios olhos. Era verdade, estava mesmo tudo parado no planeta. Sentia o equilíbrio do planeta ameaçado, mas o velho impediu-o de fazer algo, dizendo que estava tudo bem. Sentaram-se os dois, ao lado um do outro. Durante tempos ficaram em silêncio. Foi o velho a dar o primeiro passo na conversa, perguntando-lhe se ele tinha noção das consequências do que ia fazer. O Rapaz respondeu que não, mas que também não queria saber, apenas queria fazer o que achava que tinha de fazer, justificando isso com tudo o que aquela rapariga lhe tinha oferecido. O velho levantou-se e disse que o Rapaz estava perdido, esboçando de seguida um sorriso e desaparecendo. O Rapaz levantou-se e encaminhou-se para a Terra. No local onde a rapariga estava em perigo um enorme clarão começou por iluminar o céu, aproximando-se do solo acabando por produzir uma luz tão forte que impedia toda a gente de abrir os olhos. Era algo irónico como tanto na luz, como na escuridão, a sua visão lhes era negada. Quando a luz desapareceu e a rapariga abriu os olhos estava tudo bem. Estava sozinha novamente, os dois rapazes tinham desaparecido e a mala ainda estava consigo. Correu até casa, mais assustada pelo enorme clarão de luz e pela forma como os dois rapazes se evaporaram do que pelo que assaltado falhado de que tinha sido vitima. O Rapaz voltou para a Lua, sentou-se e sentiu tudo em si desvanecer. Pensou para si que seria aquela a consequência de ter descoberto o que eram os sentimentos mas que, apesar disso, não tinha sido em vão. Ele ia desaparecer, era certo, mas levaria consigo a certeza de que tinha feito o que era correcto e tinha descoberto algo que muita gente nunca descobriu: a chave para a felicidade. O Rapaz desfez-se em pó. Não era um pó normal, era um pó luminoso de várias cores. Os outros rapazes do espaço tinham observado atentamente o que aconteceu. Um a um, sorrateiramente, escaparam das suas luas e vieram à Lua da Terra. Cada um pegou num grão de pó e, perto da Lua, fizeram força de forma a unir cada grão, na esperança que o seu companheiro voltasse à vida. Em vez disso, o que obtiveram foi algo semelhante a uma esfera luminosa. Luminosa o suficiente para brilhar na escuridão que se fazia ver na noite terrestre. Para os rapazes do espaço, aquilo era o coração do seu amigo. Para nós, terrestres, chamámos aquilo de estrela. Foi assim, que apareceram as estrelas.
Terminada a história Carolina estava fascinada. Com um sorriso pacífico no rosto aninhou-se nos lençóis e não demorou muito a adormecer. A mãe, perdeu algum tempo a olhar pela clarabóia para uma estrela que brilhava incessantemente no céu, mais que todas as outras.
- Boa noite. - sussurrou ela, enquanto abria a porta do quarto para deixar a sua filha dormir.




Crow.