sábado, 2 de outubro de 2010

O Mapa do Sorriso


Acordei quando o relógio marcava cinco e trinta da manhã. Estava programado para esse fim, soltando um som semelhante a um gato a ser esfolado. Não era propriamente agradável, era sim irritante o suficiente para me acordar. Levantei-me ainda a dormir e dirigi-me à casa de banho para começar o dia. Urinei como se estivesse há uma semana sem o fazer e preparei-me para tomar banho. Era o ritual de todas as manhãs, repetia-o há anos e não via porque mudar. Enquanto a água jorrava da torneira fazendo um barulho que invadia o silêncio até lá instalado dirigi-me à cozinha para beber um copo de água. Enquanto o fazia, senti um corpo pequeno e peludo a esfregar-se na minha perna.
- Olá amigo. – Disse eu, baixando-me para lhe passar a mão no pelo.
O meu gato respondeu com um miau de contentamento, deitou-se junto ao meu pé e ficou a olhar para mim. Sorri de volta e disse-lhe que não tinha tempo para brincar com ele agora.
Enquanto tomava banho e era despertado pela água quente que me batia no corpo, surgiu-me na cabeça o sonho que tive. No meu sonho, estava sentado no escuro, o ar era rarefeito e a única coisa que se ouvia era um gotejar. Parecia que as gotas caiam ritmicamente em algo metálico, orquestradas por aquela escuridão aterrorizante. Quanto tempo fiquei ali sentado e imóvel ao certo não sei, mas sei que fiquei o suficiente para começar a pensar que ia morrer. Para mim, aquilo não era um sonho. Por algum motivo obscuro tinha sido transportado da minha cama para aquele lugar escuro, onde não conseguia ver nada e a única coisa que eu sabia o que existia ali era a minha pessoa e aquele gotejar. Não sabia o que estava no escuro e isso aterrorizava-me. E muito. Preferia saber o que estaria ali, com o que estaria a lidar. Provavelmente poderia ficar assustado na mesma mas aí eu poderia pensar nalguma forma de lidar com o que estava à minha frente. No escuro não, eu não sabia o que estava ali. Se é que sequer estava alguma coisa. Petrificado como uma estátua budista de um monge em meditação fiquei sentado no escuro enquanto era invadido por suores frios, espelho do medo que me consumia lentamente por dentro. Subitamente um feixe de luz apareceu. Não sei se estava perto ou longe, aquilo parecia-me um espaço infinito e não era capaz de distinguir as distâncias. Sei sim que estava a uma distância suficiente para me dizer de forma audível «ela está em perigo!». Não fui capaz de responder. Queria perguntar de quem a voz estava a falar, a quem pertencia a voz, onde estávamos, mas continuava com demasiado medo para reagir. O facto de ainda respirar era para mim uma surpresa, da forma como todos os meus músculos estavam congelados pensei que os meus pulmões também tinham parado já há muito tempo. Pouco a pouco comecei a reparar que a luz se aproximava, lentamente, ecoando a tal frase. Quando ficou mesmo à minha frente senti uma sensação de calor, como se de um abraço maternal se tratasse. O gelo que me impedia a minha locomoção foi derretido nesse momento e pela primeira vez naquele curto (ou longo) espaço de tempo fui capaz de me mover.
- Ela quem? – Perguntei enquanto me levantava, mexendo cada músculo como se quisesse garantir que cada um deles estava mesmo a funcionar.
Da parte da luz não obtive resposta. Dentro da luz apenas conseguia ver uma figura branca cujo rosto eu não conseguia ver pois o brilho da luz cegava-me quando eu tentava. A figura branca pegou na minha mão e puxou-me para a luz. O cenário subitamente tinha mudado. Antes estava num sítio escuro, frio, com o ar podre e rarefeito e com uma torneira ou algo do género que gotejava com a função de levar alguém à loucura. Algo semelhante a um calabouço de uma prisão pré 25 de Abril. Quanto mais pensava nisso, mais me esquecia de onde estava e imaginava-me como um revolucionário de cravo ao peito, capturado pela polícia do estado e sendo sovado com o objectivo de que me retirassem informações. Fugindo desse pensamento dava por mim num lugar completamente oposto ao anterior. Um sítio iluminado, quente, onde o ar era limpo e cheirava a flores. Perdi algum tempo a tentar desmistificar que flor era, mas desisti rapidamente. Nunca foi algo que me agradasse muito, mas era melhor que o cheiro a podre que me agoniava anteriormente.
- Ela está em perigo! – Repetia incessantemente aquele espectro.
Não perdi o meu tempo a perguntar quem. Sabia que não ia obter uma resposta. Quanto a frase era repetida, mais surgia no meu ouvido a repetição da palavra perigo.
- Perigo? – Perguntei eu.
Finalmente obtive uma resposta. O tal espectro moveu a cabeça para cima e para baixo, ou seja, respondendo de forma afirmativa. Logo após isso começou a afastar-se. Aparentemente era afastado contra a sua vontade, pois parecia que esbracejava violentamente contra algo que eu não conseguia ver. Comecei a correr atrás. Quanto mais eu corria, mais longe parecia que ele ficava, mas enquanto o consegui ver continuei a correr. Chegou a um ponto que simplesmente desapareceu. Não restava nenhum sinal, nenhuma marca. Fiquei novamente sozinho, desta vez nesta divisão iluminada. Quando me sentei reparei que ao meu lado estava um piano. Quando era pequenino queria um. Não sei porquê, mas fascinava-me quando via as pessoas tocarem piano e queria aprender a tocar. Ainda hoje queria, mas não era um desejo tão forte como antes. Quando me sentei ao piano, tudo mudou novamente. Agora eu vestia um fato preto com riscas brancas e uma gravata vermelha. Tinha fios pretos ligados aos dedos que me faziam tocar incessantemente contra a minha vontade. Tentar lutar contra aquele controlo era inútil portanto conformei-me e deixei-me levar. Como um naufrago que se perde em alto mar e se resigna com o seu triste destino. Fica sentado na sua jangada, observando o mar e o céu. Pensa que se fosse um pássaro, poderia voar dali para fora. Se fosse um peixe, estaria em casa. Quando percebi, os fios quebraram-se e eu tocava sozinho. Mas tocava por minha vontade. Por mais bizarro que parecesse, eu, que nunca tinha tocado piano, estava naquele momento a tocar com mestria uma das obras de Yann Tiersen. Fiquei ali a tocar até voltar a suar abruptamente, tal e qual como quando corri atrás do espectro. Quando parei e me levantei, uma enorme mancha negra passou por cima de mim e tudo voltou ao normal. O piano desapareceu, o fato com a gravata vermelha também e eu estava de volta à minha roupa de dormir. De volta à realidade da sala iluminada, senti que estava ainda mais brilhante. Tive dificuldades em manter os olhos abertos e quando consegui finalmente manter um nível onde me fosse permitido ver o que estava à minha frente reparei que no lugar onde estava o piano, estava uma mesa com um gira discos. Estava coberto de pó, assim como o disco que se encontrava ao seu lado. Curioso, soprei o pó que em cima de ambos se encontrava e coloquei o disco a tocar. Começou com uma bela e calma melodia de violino, até que começou a emitir um som insuportável. Um ruído estridente, como que se alguém estivesse a ver as suas cordas vocais a serem esticadas enquanto que ao mesmo tempo era apunhalado por 20 homens que o faziam perfeitamente sincronizados. Foi nesse momento que acordei.
Quando saí do banho percebi que tinha ficado hora e meia debaixo de água. Sequei o cabelo com a toalha rapidamente, enquanto ao mesmo tempo me queixava que se tivesse o cabelo curto não teria estes problemas todos, e vesti-me de forma igualmente rápida. Peguei numa fatia de pão, barrei-a com manteiga, meti-a na boca e saí de casa a correr. Não disse adeus a ninguém, os meus pais ainda dormiam e não os queria incomodar. Eles sabiam onde eu ia e a que horas voltava, portanto não era algo de mais. Quando fazia isto ficava sempre com o pensamento de que se não voltasse a casa não lhes teria dito adeus. Confesso que a ideia me atormentava ligeiramente, mas não me preocupava muito. Acreditar que iria voltar confortava-me mais do que deixar-me atormentar por tais improbabilidades.
A caminhada para a escola é sempre agradável durante esta altura do ano. O ligeiro frio é contrastado pelo calor do sol matinal que me bate na cara e força-me a fechar os olhos enquanto ando. Isso faz-me reflectir. É como se o meu interior se deslocasse para fora do meu corpo, enquanto este continua a caminhar de forma automática em direcção ao seu destino e o meu interior senta-se no seu ombro aproveitando a boleia e pensando. Uma das coisas que mais me surge na cabeça é que irei chegar à escola e irei ver os meus amigos. Pergunto-me para mim se os quero ver. Surge-me a hipótese de não querer ver, mas rapidamente se dissipa. Eles são meus amigos, portanto eu gosto deles. Por vezes fazem asneiras, mas é natural na nossa idade. Conformo-me com a resposta que obtive e dirijo-me para outros pensamentos. Penso em tudo, desde o que se passa comigo até ao que se passa com o mundo, voltando por vezes aos amigos. Chegado à escola, sento-me à porta da sala, quieto. A ritmo de conta-gotas os meus amigos e os meus colegas vão chegando pouco a pouco, largando desde o mais frio bom dia a um aperto de mão animado. No meio do barulho provocado por centenas de alunos que por ali esperam pela pessoa que os irá leccionar durante as próximas horas, toca a campainha avisando todos que as aulas vão ter inicio. O professor aproxima-se, abre a porta e cada um se dirige ao seu lugar. Ao meu lado senta-se um rapaz chamado Viriato. Nós chamamos-lhe apenas Viri. Aparentemente ele não gostava muito do nome. Consigo compreender porquê, não é um nome muito normal e acredito que nos anos que teve História tenha ouvido uma boa dose de piadas por parte dos professores. Verdade seja dita que eu não tenho muito o direito de falar de nomes alheios, afinal, o meu nome é Maqui. Não sei porque é que os meus pais me deram este nome, nem nunca tive muita curiosidade em saber. Acho mais engraçado pensar que estavam sobre o efeito do álcool na altura que me registaram. Tem sempre mais piada. Seja como for, não me preocupa muito. Por mim, nem tinha nome. Ter nome ou não ter é me indiferente. Não sei explicar de uma forma lógica porque não me importa o nome, mas a verdade é que não me importa mesmo. Afinal, para ter uma conversa interessante com uma pessoa não preciso de saber o nome dela.
- Silêncio! – Gritou o professor.
É um homem alto, deve ter cerca de metro e noventa. Isso aliado ao seu aspecto imponente de quem vai ao ginásio todos os dias torna-o uma figura de respeito e por isso todos absorvem o seu berro e calam-se, engolindo em seco tudo o que tinham para dizer.
- Hoje não irá haver aulas. – disse o professor com um sorriso na cara.
Imediatamente toda a gente começou a falar baixo uns com os outros, instalando assim um burburinho dentro da sala. O professor berrou novamente. Um rapaz chamado António José, Tózé para os amigos, foi o primeiro a insurgir-se.
- Não vai haver aulas porquê? Quer dizer, é algo bom, mas fizeram-nos vir aqui para quê então? – Perguntou ele num misto de revolta e felicidade.
- Não vai haver aulas hoje porque, como sabem, hoje de noite vai haver uma chuva de estrelas. Portanto a aula que irão ter vai ser de noite. A escola planeou isto já há algum tempo e os vossos pais estão informados. O objectivo era ser uma surpresa.
Todos ficaram felizes. Uma chuva de estrelas é sempre um fenómeno sempre interessante de se observar e com equipamento indicado para tal, torna-se ainda mais interessante. Como costume há sempre que diz uma coisa do género «Estrelas? Isso é para meninas! Ainda por cima hoje dá o Benfica! Eu cá não venho!» achando que tem piada, corando depois de vergonha quando repara que ninguém se riu. Fomos informados das horas a que tínhamos de estar prontos pois era um veículo próprio dedicado para o dia de hoje que nos ia buscar a casa e saímos da sala. Quase que em uníssono os alunos saíram das salas e o barulho era imenso. «Vai ser espectacular!», «Vou adorar!», «Que seca!» eram as frases do momento. Eu não tinha nada a dizer, portanto ficava calado. Mesmo que não gostasse iria ter de lá estar, portanto convinha-me muito mais ser algo do meu agrado do que não o ser. Não era um direito, era uma obrigação. Se fosse um direito o mais provável era nem meter lá os pés. Preferiria ficar por casa e deitar-me no telhado a ver a chuva de estrelas, do que estar numa escola, com centenas de alunos a ver. Aborrecia-me. No entanto, conformei-me e segui em frente. Chegado a casa deitei-me no sofá. Não me apetecia fazer nada, portanto fiquei ali a olhar para o ar e acabei por adormecer.
Acordei às sete da tarde. Às oito era quando deveríamos estar despachados, portanto ainda tinha tempo. Levantei-me do sofá, murmurando insultos ao quão desconfortável era e à dor de pescoço que me tinha dado, fui à casa de banho e passei a cara por água. Enquanto limpava a água da cara aproveitei para passar a toalha pelo cabelo para lhe dar um jeito. Iria ficar despenteado na mesma, mas pelo menos ficava livre da minha consciência. “Pelo menos tentei penteá-lo!” poderia sempre responder-lhe. Peguei na mala, despedi-me e saí de casa. Fiquei algo preocupado pelo facto de a única resposta que ouvi ao meu adeus ter sido um fraco miar do meu gato, mas não perdi muito tempo a pensar nisso. Quando o autocarro chegou saiu de lá um homem fino, de óculos e com um ar de quem não gostava muito de estar ali. Perguntou-me se era eu o Maqui (esboçou um sorriso, que eu ignorei, quando leu o meu nome no papel), respondi que sim e entrei. Procurei por um lugar ao pé de alguém conhecido. Não demorei muito a encontrar. Sentei-me ao pé de uma rapariga chamada Maria. Ela é provavelmente a rapariga mais bonita da turma e talvez uma das mais bonitas da escola. No entanto, não é isso que mais me interessa nela. O facto de estar sempre com um sorriso na cara é o que mais me cativa e preocupa. Sinto sempre que há algo ali que não está certo, mas não sei o que. Naquele momento ecoou-me na cabeça aquela voz, gritando de forma ensurdecedora «Ela está em perigo!». Meti as mãos aos ouvidos, a voz começava a causar-me dores. Senti que por momentos os meus tímpanos iriam explodir e que alguém bastante sádico iria adorar esse resultado deste jogo doente.
- Estás bem Maqui? – Perguntou-me ela, colocando a mão no meu ombro.
- Sim, não é nada.
A voz parou. Parei de pensar no facto de ela estar ao meu lado com medo que a voz voltasse. Passado algum tempo ela voltou-me a perguntar se estava mesmo tudo bem, pergunta à qual respondi com um rápido sim, de forma a não ficar com a voz dela presa na minha cabeça.
Quando chegámos à escola olhei para o pequeno monte que fica ao lado desta. Não consegui evitar esboçar um sorriso. Juntei-me ao resto dos membros da minha turma e fui para perto do nosso professor. Após ele confirmar a nossa presença, eu afastei-me. Maria notou que eu me estava a afastar e agarrou-me pelo braço.
- Onde vais? Está escuro, podes perder-te!
- Não te preocupes, vou só fazer uma chamada.
Ela largou-me e eu afastei-me. Desta vez a voz não apareceu no meu pensamento, mas o meu pensamento chamou pela voz. Era mais forte que eu, não conseguia evitar pensar naquilo. Porque é que surgiu naquele momento? Ela é a Maria? Porquê? Enquanto pensava fui caminhando rumo ao monte. Nos meus primeiros anos naquela escola subi-o várias vezes com alguns amigos, portanto sabia os trilhos mais fáceis de cor. Não demorei muito a chegar à parte mais alta. Era um sítio perfeito para se ver as estrelas. A luz era pouca, o que permitia uma maior visibilidade e todo aquele ambiente sereno à volta tornava tudo mais mágico. As árvores enrolavam-se com o vento, como um par destinado a dançar junto para sempre. Por vezes saltavam algumas folhas, lembrando um pequeno pássaro que saía da asa da mãe, pronto para enfrentar o mundo. O mais provável era, se fosse ingénuo, acabar morto. O mesmo acontece às folhas. Se forem ingénuas e confiarem sempre no vento, irão acabar mortas.
Sentei-me e procurei na minha mala por uma garrafa de água que, quando encontrei, bebi toda de seguida. Toda aquela situação no autocarro tinha-me deixado a garganta seca e a desesperar pela maior quantidade de água possível. Deitei-me a olhar para o céu. Todas aquelas estrelas deixavam-me a pensar se haveria alguém, noutro lugar na mesma situação que eu: deitado, na relva, a olhar para as estrelas e a pensar nisto.
- Então estás aqui! – Gritou uma voz feminina, interrompendo o meu pensamento.
Levantei-me e olhei à minha volta procurando ver quem era. A voz soava-me familiar, mas não conseguia ver quem era.
- As pessoas estão a perguntar por ti, idiota!
- Maria…
- Olá! – Disse ela sorrindo e saindo de trás da árvore.
- O que é que estás aqui a fazer?
- Segui-te. Apeteceu-me. Fiquei curiosa para ver onde ias e vim atrás de ti.
Não respondi. Voltei a deitar-me e ficar a olhar para o céu. Ela aproximou-se e deitou-se ao meu lado. Não evitei que a minha mente fosse invadida por pensamentos sexuais. Estamos os dois juntos, sozinhos, num lugar vazio onde as probabilidades de aparecer alguém estão perto do zero e sou um rapaz.
- Isto aqui é realmente bonito!
Estava com um olhar visivelmente deslumbrado. Os seus olhos pareciam que brilhavam tanto como as estrelas.
- É bonito e assustador ao mesmo tempo.
- Assustador?
- Sim. Parece que a qualquer momento o céu se vai vergar e partir ao meio, incapaz de albergar tantas estrelas. Depois, o céu é enorme. Faz-me sentir pequeno. Com tanta estrela dentro dele, parece que alcançou milhares ou até milhões de sonhos e estas adornam-no como se medalhas fossem. Isso mete-me medo. Mete-me medo porque dentro de mim há um céu completamente escuro, sem uma única estrela. Faz-me pensar que nestes anos de vida, nunca alcancei nada. Nunca fiz nada que me fizesse achar que estou mais perto dos meus sonhos. Isso faz-me sentir miserável. Dá-me até vontade de morrer. Mas o facto de ser novo e ter um longo caminho a percorrer para os realizar faz-me ter coragem para viver. Depois, quando há a dita chuva de estrelas, parece que o céu está a gozar comigo. Como quem se gaba de ter tantas medalhas que pode dispensar algumas, atirando-as de forma arrogante pela janela de sua casa.
- Maqui…
- Desculpa, é capaz de ser algo estranho dizer isto. Não queria soar assustador.
Pela primeira vez desde que me lembro, olhei para ela e ela não estava com um sorriso plantado na cara. Não estava triste, mas não estava a sorrir. Estava com um rosto neutro, como se não tivesse nenhuma emoção. Percebi que estava mergulhada em pensamentos.
- Compreendo-te. Mas prefiro pensar antes que é um espectáculo bonito que a natureza nos oferece, em vez de ter essa visão obscura das coisas! – Disse ela, voltando a sorrir.
Não lhe respondi. Não foi por não querer, simplesmente não tinha nada para responder. Quando assim é, fico calado.
Ficámos ambos a observar o tal espectáculo natural. De vez em quando ela gritava «olha aquela, é tão bonita!» e eu respondia com um sorriso. Era realmente algo fenomenal. Parecia que estava alguém a pintar uma tela gigante e aquela chuva de estrelas representava o traço do pincel do artista, que pintava a sua obra-prima. Ao ver aquilo não conseguia pensar mais que o céu estava a gozar comigo, mas ficava sim agradecido por poder observar tal coisa.
Quando chegou ao fim, ela perguntou-me algo que sempre achei que me queriam perguntar mas que algo os impedia.
- Desde quando é que adquiriste essa visão das coisas? Desde quando é que ficaste assim?
- Assim como?
- Tão vazio. É como se não tivesses emoções. Se as tens, os teus olhos não as exteriorizam, impedindo que as outras pessoas as vejam. Nunca te vi chorar, mesmo no dia em que os teus pais tiveram um acidente de carro e quase os perdeste.
- É uma longa história.
- Se não queres contar, podes simplesmente dizer que não.
- Está bem, eu conto. Mas não me interrompas, por favor. Eu tinha uma irmã. Sim, tinha. Ela morreu. Para a minha irmã eu sempre quis passar a imagem de ser um muro que ela um dia teria de saltar. Por vezes era algo duro com ela, mas sabia que isso daria frutos um dia. No fundo acho que ela sabia que eu gostava muito dela e isso deixava-me descansado. Por vezes de noite, quando me levantava, encontrava-a sentada na cama a olhar para o vazio. É como se ela estivesse ali em corpo, mas não em alma. Quando ela tinha 4 anos, perguntou-me porque é que as pessoas viviam. Não lhe soube responder, disse-lhe que iria descobrir um dia por ela própria. Mas não é isso que importa agora. Quando eu tinha 8 anos, ela tinha 3. Os meus pais tinham-me comprado uma bola nova e eu tinha-a levado para a rua, para brincar com os meus amigos. Quando voltei, voltei sem ela. Um rapaz mais velho tirou-ma e fugiu com ela. Voltei para casa e sentei-me no canto do quarto a chorar compulsivamente. Não chorei porque fiquei sem a bola. Chorei porque tinha sido fraco, não tinha sido capaz de reagir. Fiquei com medo porque ele era maior, mais velho e mais forte que eu. Não tinha raiva dele, tinha raiva de mim, por ser fraco. Se eu queria que a minha irmã me visse como um muro que um dia teria de saltar, do que é que iria servir se eu fosse fraco? No meio das lágrimas ela entrou no quarto. Eu gritei com ela, disse-lhe para sair, mas ela aproximou-se de mim e deu-me uma chapada e chamou-me idiota. Dois anos depois ela morreu, nunca entendi bem porquê, nem preciso de entender. Mas essa memória não morreu. Prometi a mim mesmo que não ia chorar. Cada vez que tenho vontade de chorar rio-me, porque sei que se deitasse uma lágrima sequer ela me iria chamar idiota e essa imagem traz-me um sorriso.
Ela não disse nada. Ficou a olhar para mim. Achei que ela iria chorar, mas estava enganado. Ela sorriu para mim.
- Posso fazer-te uma pergunta? – Perguntei eu, enquanto nos levantávamos.
- Claro.
- És feliz?
Tudo parou. A rotação da terra, o sistema solar, o universo, as estrelas, os relógios, a evolução, tudo o que estava em movimento parou naquele momento. Ela olhou-me nos olhos durante alguns segundos e abraçou-me. No meu ombro, chorou compulsivamente, enquanto me apertava contra ela com toda a força dos sentimentos que reprimiu até aquele dia. Nunca senti algo assim antes. Toda a raiva, angústia, miséria, tristeza dela eu pude sentir. A força com que as unhas dela se cravaram em mim naquele momento deixou-me uma cicatriz que eu nunca irei esquecer.
- Obrigado – disse ela limpando as lágrimas do rosto – Acho que precisava disto.
Deixámos aquele sítio. Não trocámos uma única palavra durante o caminho. No fim, no momento da despedida, ela agradeceu-me novamente, deu-me um beijo na cara e foi-se embora. Naquela noite voltei a sonhar com aquele quarto iluminado. O espectro voltou a aparecer. Desta vez, estava mais composto e tinha um sorriso na cara. “Obrigado”. Foi o que ele me disse, antes de desaparecer.

Obrigado por terem lido,
Crow.

----

Agora já é possível comentarem sem ser necessário ter conta.
Peço desculpa por possíveis erros na escrita. É a esta hora que me sinto mais à vontade para escrever e perante o sono com que me encontro, é complicado não dar erros. Faço questão de reler o que escrevo, mas há erros que podem escapar.

6 comentários:

  1. Adorei bastante, meteoro. De verdade.
    Está lindo!

    ResponderEliminar
  2. Acho bem que já dê para assinar! Sempre a ignorar a míope ;___;

    ResponderEliminar
  3. "senti um corpo pequeno e peludo a esfregar-se" parei de ler aqui

    ResponderEliminar
  4. palavras para definir para mim é dificil ,mas uma uma coisa eu tenho a certeza estas palavras orgulham me de uma maneira tao boa e com um ego a crescer.vale a pena lerem ,nao é perca de tempo ,alem da mensagem que caracteriza a historia ,tá tudo muito lindo ,amei ...continua..

    ResponderEliminar
  5. FINALMENTE LI! e gostei. @

    ResponderEliminar
  6. Hei-de ler pela segunda vez, com mais atenção, mas sim, gostei :)

    ResponderEliminar