terça-feira, 19 de outubro de 2010

Requiem - Terceiro Turno

I
II

III

Depois daquele dia não se falaram mais. Duas pessoas normais estariam nesta altura a desfilar pelo recinto escolar de mãos dadas, exibindo o seu "amor". Eles não. Nem uma única palavra trocaram. Parecia que a presença um do outro era suficiente para saciar o que sentiam. Talvez se encontrassem às escondidas. Não, pouco provável. Quando não havia nenhum motivo para estudar ele vinha a minha casa e passávamos a tarde a jogar e duvido que ele escondesse algo de mim. Possivelmente sou a única pessoa em quem ele confia completamente, aquilo que se pode chamar de "melhor amigo", portanto posso muito bem excluir esta opção. Fora que se ele me contou o que se passou entre eles os dois, não tinha razões para me esconder o resto. Ao que parece é assim que funciona o amor entre dois génios.
- Para onde é que estás a olhar? - Perguntou-me River, de forma algo hostil.
- Porquê? Estavas a ficar incomodado era? Olha que ela não ia gostar disso! - Aproveitei eu para brincar com a situação.
Ele não respondeu. Soltou todo o ar que lhe preenchia os pulmões na forma de um suspiro e seguiu em frente.
- Não precisas de ficar chateado! - disse-lhe.
- Não fiquei.
O resto do caminho foi feito em silêncio. Ele parecia perdido dentro dele, como se procurasse a peça que lhe falta para terminar o puzzle, peça essa que caiu num canto escuro e escondido. Eu também não fazia intenção de o interromper, portanto, sem algo de interessante para dizer, fiquei calado.
A minha casa ficava primeiro, portanto o resto do caminho ele fazia-o sozinho. Às vezes penso que ele até dava graças por isso. Tinha cerca de dez minutos onde podia andar, silenciosamente, perdido no azul encantador do céu, como se quisesse saber quem ali o colocou, sendo apenas interrompido por tropeçadelas constantes na calçada maltratada.
- Adeus! - berrei de forma alegre.
- Espera.
- Hm? Diz.
- Eu sou... estranho? - perguntou de forma hesitante.
- Estranho? Porquê?
- Por não sentir necessidade de estar com ela. Estar como quem diz, andar com ela de um lado para o outro. Tenho a certeza que ela também se sente assim. A verdade é que não tenho mesmo necessidade de estar com ela. O simples facto de a ver ali, perceber que ela está feliz, deixa-me feliz. - desabafou.
- Sim, és estranho. - respondi sem hesitar.
- Obrigado.
- Espera! Estava a brincar. Não te acho estranho. És um idiota sonhador e, aparentemente, um romântico. Talvez isso já venha incluído no idiota, mas por agora convém fazer distinção das duas coisas. Eu não acho isso estranho. Estranho seria ver-te seguir o padrão normal da sociedade. Estranho seria ver-te fazer o que os outros fazem e tu tanto tempo perdes a criticar. É bom ver que nem o amor, o mítico sentimento capaz de derrubar toda e qualquer racionalidade, te fez sucumbir. Para te considerar estranho teria de alterar os alicerces nos quais ergui a minha vida e isso não só daria uma trabalheira do caraças, como não me apetece minimamente. Gosto bastante e orgulho-me deles. Tudo isto para dizer que para mim não és estranho e que ser estranho não é necessariamente mau. Tens em ti o amor que toda a gente sonha, o amor romântico dos poemas e dos contos de fadas. Para os outros talvez seja estranho, não estão habituados. Para mim não. Eu até acho piada! A única coisa estranha aqui é questionares-te dessa forma.
- Idiota.
Naquele momento, quando me chamou idiota, significou que aceitou o que eu disse. Era sempre assim. Quando ele não sabia o que dizer ou o que fazer, chamava-me idiota. Não pensei mais naquilo, entrei em casa e dormi sobre o assunto. A minha missão enquanto amigo foi cumprida.

- Snow, acorda, o River já está à tua espera!
- Porra!
Levantei-me à pressa, corri pela casa atirando ao chão o que não me interessava, transformando um quarto arrumado de forma organizada num campo de batalha., tudo isto enquanto comia uma torrada quase que completamente queimada (gostava delas assim) e me vestia ao mesmo tempo. Realmente, era mesmo um fenómeno da natureza. Tudo isto porque era dia de jogo grande! A equipa da cidade jogava contra a equipa rival e River tinha arranjado bilhetes. Era um jogo de ânimos quentes e o único momento em que, para nós, a lógica, a racionalidade, tudo isso era posto de lado. Toda a decisão contra a nossa equipa era errada e toda a decisão a favor era certa. Era como se uma neblina nos toldasse a vista, autorizando-nos apenas a ver o que nos interessava.
- Desculpa, vamos! - disse-lhe, enquanto recuperava o folgo.
- Não faz mal - disse ele, rindo-se - vim mais cedo, já sei como é que és.
Entramos no estádio e já este se encontrava bem composto. Deviam estar cerca de vinte mil pessoas. Não, talvez trinta mil! A lotação estava a abarrotar. Do lado onde estavam os adeptos rivais ouviam-se assobios aos cânticos da nossa bancada. O jogo ainda nem tinha começado e já os ânimos estavam quentes, com a policia a ter de intervir por duas vezes. Parecia um espectáculo de luta entre duas aguarelas. A verde tentava engolir a pequena mancha vermelha, tornando-a da sua cor, mas esta resistia e com a força da sua voz tentava libertar-se do verde que a rodeava.
- River, onde são os nossos lugares? - perguntei - O jogo está quase a começar!
- Snow...
- Quase não te oiço!
- Snow... é o meu pai... - disse ele, apontando para o, aparentemente, treinador da equipa adversária.


Crow.

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