domingo, 10 de outubro de 2010

Requiem - Primeiro Turno

I

Era o meu primeiro dia de aulas. A entrada para o primeiro ano é sempre especial. É ali que se vai iniciar, teoricamente, a nossa formação profissional, é naquela escola que faremos muitos dos amigos que nos acompanharam durante a vida, é ali que iremos passar por experiências de coisas que nunca antes imaginámos que existissem. Estavam todos num estado de excitação enorme, procuravam amigos que conheciam porque os pais também eram amigos, então eles também teriam de ser. Outros choravam porque tinham medo de deixar a asa dos pais. Não conseguia sentir nada mais do que dó deles. Preferiam ficar aconchegados debaixo daquele escudo protector em vez de correr atrás do futuro, cair, esfolar os joelhos, mas acabar sempre de pé. A única coisa que me passava pela cabeça é que era aborrecido. Muito. Não me apetecia fazer nada. Apetecia-me ficar ali deitado a olhar para as nuvens para sempre. De vez em quando passava um pássaro que voava rumo ao seu destino, como se me estivessem a avisar que não podia ficar ali para sempre e também eu tinha de ir a algum lado. Eu queria que o tempo parasse, mas sabia bem que isso só seria possível na minha cabeça. Ao som daquela campainha velha e irritante levantei-me, peguei na mochila e procurei pela minha sala. "Lembra-te, é a sala um!" foi o que a minha avó me disse. Quando encontrei a sala lembrei-me do que tinha pensado quando ela me disse qual era a sala. "Sala um para o número um!".
Entrei e sentei-me num lugar escolhido ao acaso. Não queria ficar à frente. Esses lugares são para dois tipos de pessoas: os que se matam a estudar ou os lambe-botas. Ou então um misto dos dois. Optei por me sentar num lugar atrás, perto da janela para poder ver as nuvens. Tinha sido o primeiro a chegar e essa ideia não me agradava muito, mas já ali estava, não havia muito que pudesse fazer. A ritmo de conta-gotas foram entrando todos os outros alunos. Lembrava-me uma tímida chuva miudinha que aparece na altura da transição de Verão para Outono.
- River! - disse um rapaz do lado de fora da janela.
Respondi-lhe com um sorriso. Snow é provavelmente aquilo que eu poderia chamar de melhor amigo. Segundo consta, desde a maternidade que nos conhecemos. Nascemos no mesmo dia gelado de Inverno, os nossos pais conheciam-se e desde que me lembro de existir Snow sempre foi meu amigo e sempre brincámos juntos. Não é que fossemos irmãos, mas a verdade é que éramos bastante parecidos. Ambos tínhamos uma estatura normal da idade, nem muito grande, nem muito pequenos. Provavelmente nos nossos dezoito anos iríamos atingir ambos, no máximo, o metro e oitenta. A maioria dos outros rapazes usava o cabelo curto aproveitando para o levantar de diversas formas e feitios, mas nós tínhamos ambos o cabelo algo grande, o suficiente para ficar perto de nos tapar os olhos e de cor castanho claro, perto do loiro. A principal diferença assentava na cor dos olhos. Os olhos dele eram brancos e os meus azuis. Quando ele nasceu os médicos pensaram que ele teria algum problema grave mas a verdade é que não acharam nada que lhes desse garantias disso e ele é um rapaz perfeitamente saudável. Acabaram apenas por considerar um raro fenómeno da natureza e era assim que normalmente acabavam as nossas conversas. "Eu sou um raro fenómeno da natureza e tu és o homem que irá superar Deus!".
- Tenho alguma coisa na cara? - perguntou-me ele esfregando a cara.
- Não, desculpa. - respondi enquanto me ria - estava só a sonhar acordado.
- Como costume. Já agora, que sala é essa?
- Um.
- É? Ainda bem. Parece que ficamos os dois na mesma sala. Ainda bem que te encontrei aí dentro, não sabia onde era a sala e o mais provável era acabar por desistir de procurar e ir para casa. Tenho sono sabes?
Voltei a rir-me. Quando dei por mim já ele tinha saltado pela janela para entrar dentro da sala. Quando entrou fez questão de sentar-se na mesa ao lado da minha, espantando com o olhar outro rapaz que para lá se dirigia.
Passaram-se perto de dez minutos até entrar uma senhora na sala. Era alta, devia estar perto do metro e setenta e cinco, tinha os olhos verdes e vinha vestida como se viesse de um piquenique. Tinha um vestido verde com flores para combinar com a cor dos olhos e um chapéu de palha com uma flor. Quando entrou todos se calaram, apesar do ar maternal ela aparentava ser capaz de nos arrasar, como um tornado arrasa uma cidade inteira, só com a voz.
- Olá, o meu nome é Lenna - dizia ela enquanto pousava o chapéu em cima da mesa - e vou ser a vossa professora durante os próximos quatro anos. Vou agora chamar-vos por ordem e depois quero que me digam um pouco sobre vocês. Foi chamando um a um por ordem alfabética e marcando no pequeno caderno que tinha na mão alguma coisa que eu não sabia mas que tinha uma certa curiosidade em saber. Gostava de ter o poder para parar o tempo e ir lá espreitar sorrateiramente o que ela estava a escrever. Eu devia ter prestado atenção para memorizar alguns nomes, afinal, iam ser meus colegas durante 4 anos, seria conveniente saber os nomes das pessoas com quem ia lidar. O que fiz foi exactamente o contrário, acabei por me desligar completamente a observar o céu. Quando voltei à terra já ela ia no r, mais precisamente num tal Renato. Quanto mais olhava para ele mais o achava burro. Não sei porquê, simplesmente achava.
- River? - perguntou ela.
Levantei o meu braço como assinalando que era eu.
- Tens um nome bastante interessante. É invulgar. Sabes o que quer dizer?
- Sim, river quer dizer rio em inglês.
- Muito bem. Porque é que tens esse nome? Sabes?
- Não. Nunca me foi dito porquê, mas também nunca questionei. Talvez os meus pais quisessem que eu funcionasse como um rio, ou seja, que fosse crescendo calmamente até ao momento em que atingiria o oceano e tornar-me-ia parte dele. Mas não é isso que vai acontecer.
- Não? Porquê?
- Porque eu tenho objectivos. Ou sonhos, se preferir. Não quero ser mais um no oceano, quero ser mais que isso. Se eu quisesse estudar, tirar boas notas e trabalhar para uma boa empresa não me parece que tivesse a menor dificuldade. Mas qual seria a piada disso? Uma vez li um livro no qual o herói dizia que se a escolha for entre a tempestade e a paz, devemos escolher sempre a tempestade. É esse o meu caminho.
Iniciou-se uma conversa miúda na sala. As raparigas diziam entre si "ele tem a nossa idade e já sabe ler? Espantoso!" e os rapazes comentavam entre si "mas quem é que ele pensa que é?". Seja como for, era-me indiferente. Apenas disse o que me apeteceu dizer e não havia nada que pudesse fazer agora.
- Muito bem. - disse ela depois de mandar todos calarem-se.
Ainda ficou a olhar para mim um bocado. Parecia que me estava a tentar entrar pelos olhos e ver dentro de mim, como se eu fosse um livro e ela quisesse ler a minha história. Se conseguiu, não sei, mas confesso que me senti fraco perante aquela tentativa. Deve ter demorado apenas alguns segundos, mas da forma como se senti assustado senti que tinha demorado horas.
- O próximo é...
- Sou eu! - disse Snow interrompendo-a.
- Snow?
- Sim!
- Vocês os dois são bastante parecidos. São irmãos?
- Não. Pelo menos geneticamente não.
- Aproveito e faço a mesma pergunta que fiz ao teu amigo: sabes o que é que o teu nome quer dizer?
- Sim. Snow quer dizer neve em inglês. Antes que pergunte, eu respondo-lhe já: chamo-me Snow porque os meus olhos são brancos como a neve e isso faz de mim um fenómeno da natureza! - apresentou-se ele como se do super herói se tratasse.
Todos, incluindo a professora, ficaram a olhar para os olhos dele. De facto, eram mesmo brancos como a neve. Não eram um branco vazio, como se ele não tivesse emoções e tudo dentro dele fosse um enorme vazio. Era um branco estranhamente vivo e afável. Um branco de neve.
- Muito bem - voltou ela a dizer, desta vez no meio de um sorriso - parece que temos aqui gente com bastantes capacidades.
A conversa prolongou-se mas eu mais uma vez desliguei-me. Não conseguia ter o mínimo interesse em estar ali e continuava a aborrecer-me. Para minha felicidade, aquele lugar onde me sentava permitia-me abstrair-me de tudo enquanto olhava para o céu. Quando o fazia, sentia-me como um verdadeiro pássaro. Tudo o que me rodeava era engolido pelo azul do céu e eu voava calmamente por entre as nuvens. Nada me incomodava e eu era feliz. Fiquei a sonhar com isto durante bastante tempo.
Fui acordado do meu sonho novamente por aquela campainha irritante. Se pudesse desfazia-a. Faria questão de a apresentar a um martelo. Depois aí sim, queria ver se ela novamente se atrevia a acordar-me.
- Pronto, agora é o vosso intervalo. Têm 30 minutos para comerem alguma coisa ou para irem brincar. Não se esqueçam que quando der o toque novamente têm de voltar!
Todos saíram a correr pela porta, ansiosos por um pouco de liberdade. Nada de surpreendente, era a natureza do ser humano procurar ser livre e ansiar a cada segundo pela liberdade absoluta. Liberdade essa que nunca iria obter. Nunca passará de uma ilusão. Enquanto andarem presos pelo tempo, nunca serão livres. Sentei-me sozinho num banco a observar toda a gente. Passei os olhos por tudo e todos. Tudo me parecia tão igual, como se fossem tirados a papel químico uns dos outros. Deviam ter-se passado dez minutos de observação quando os meus olhos pararam numa rapariga. Fiquei parado a olhar para ela e nem sabia o que estava a pensar. Se havia uma ligação entre o meu cérebro e os meus pensamentos, ela estava bloqueada naquele momento. Quando ela olhou para mim não consegui evitar desviar o olhar e corar ligeiramente. Foi mais forte que eu. Sentia-me um verdadeiro idiota. Pelo canto do olho percebi que lhe tinha acontecido o mesmo.
- River! Anda jogar! - gritou Snow do campo onde quase todos os rapazes se reuniam para jogar futebol.
Esfreguei a cara, assenti com a cabeça e fui a correr. Snow meteu-me na equipa dele e disse-me para ficar na frente. O tempo passou a voar, pelo meio de joelhos esfolados, lágrimas e risos. No fim do jogo aqueles estranhos cujos nomes eu nem sabia falavam comigo como se tivéssemos trinta anos e nos conhecêssemos desde que nascemos. Era estranho, mas era uma boa sensação. Eu e Snow tinhamos os cotovelos esfolados e pingavam sangue até dizer chega, mas acabámos por achar isso normal e engraçado e fomos para dentro da sala.
- Snow! River! - gritou Lenna. - O que é que andaram a fazer? Já viram o vosso estado?
A verdade é que não estávamos muito apresentáveis. Tínhamos a roupa empoeirada, os cotovelos a pingar sangue e as calças rasgadas nos joelhos. Mandou-nos ir para a enfermaria e garantiu que não passávamos sem uma nota para os nossos pais.
- Provavelmente ela pensa que lutámos um com o outro. - disse Snow a rir-se, deitado na cama da enfermaria.
- É o mais provável. - concordei eu.
Snow foi-se embora primeiro que eu. A enfermeira tratou primeiro das feridas dele só depois das minhas. Quando me limpou a ferida com álcool não pude evitar cerrar os dentes. Parecia que me davam a cravar um ferro em brasa na pele e que o meu corpo ia entrar em combustão naquele instante, no entanto, fiz-me homenzinho e aguentei a dor. Quando saí da enfermaria, Snow estava à minha espera.
- Não devias estar na sala? - inquiri.
- Achei que devia esperar por ti. Mia, não é?
- Quem? - perguntei, não resistindo a corar ligeiramente.
Snow riu-se e, sem me responder, foi para a sala. Fui atrás dele, sempre a perguntar de quem é que ele estava a falar mas sem obter resposta.
- Muito bem Mia! - parabenizava a professora. - Já estão de volta vocês? Vão para os vossos lugares e não voltem a repetir a brincadeira!
A rapariga que estava no quadro era a mesma que eu tinha visto. Não fazia a mínima ideia que ela sequer existia até aquele momento, quanto mais que fazia parte da minha sala. Parecia um jogo doentio planeado por alguém antecipadamente. Não pude deixar de sentir que naquele dia tinham-se aberto portas dentro de mim para divisões que eu nunca tinha visitado antes. Alguém contratou um empreiteiro e sem minha autorização remodelou a minha casa, adicionando-lhe um novo andar. Naquele momento, achei correcto limitar-me a colocar um cartaz que dizia "Abandone toda a esperança aquele que aqui entrar" e esqueci o assunto. Achei que era o melhor.

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Crow.

Explicação: Requiem é uma história simplesmente complexa. Faz parte da ambição de escrever para todos, não só para intelectuais. Ou seja, pegando num tom simples e dar-lhe a maior complexidade possível, fazendo cada um sentir a história desenrolar e ver a sua interpretação surgir à frente dos seus olhos. Cada turno representa uma parte da história. Esta é a primeira parte. Obrigado a todos.

5 comentários:

  1. Que texto iuri :o, continuas com essa capacidade de escrever linda.
    Enquanto lia o texto, tive a sensaçao de estar a ler um livro, e acho que isso é bom. Grande Texto mesmo *.*

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  2. escreveste isso a ouvir as musicas que te mandei? a da lil mama e o reggaeton?

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  3. "simplesmente complexa", isso é paradoxal. nao tenho mais nada a dizer. hunf

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  4. Gostei bastante, meteoro. Tal como sempre...mas deste gostei de uma forma especial, não sei bem explicar o porquê. : )


    P.S:
    "Não queria ficar à frente. Esses lugares são para dois tipos de pessoas: os que se matam a estudar ou os lambe-botas."
    Fica sabendo que os míopes (eu) também fazem o mesmo! xD

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