sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Requiem - Quarto Turno

I
II
III

IV

- Snow... é o meu pai... - disse ele, apontando para o, aparentemente, treinador da equipa adversária.
Ele tremia por todos os lados. Parecia que, debaixo dos seus pés, estava a ocorrer um sismo de classificação onze na escala de Mercalli. Sendo incapaz de aguentar o desabamento do mundo de baixo de si foi cedendo gradualmente. Primeiro cederam as pernas, caindo de joelhos sobre o que restava de chão de baixo dele, seguiu-se o tronco, ficando completamente imóvel no chão e por fim perdeu a capacidade de se manter neste mundo. O único sinal de que ainda existia uma réstia de vida naquele corpo era a respiração tensa. Tudo o que resto dissipou-se.

Quando acordei estava de pé em cima de um vasto oceano. Pelo menos assumi que era um oceano, visto que a água era salgada e não havia mais nada a meu redor. Talvez fosse o Atlântico ou o Pacífico, pensei. Mas isso não fazia o mínimo sentido, desde quando é que eu conseguiria andar sobre o Atlântico ou sobre o Pacífico? Continuava a olhar à minha volta à procura de um sinal de terra, de um simples sinal de para onde devia ir, quando me apercebi da presença de um rapaz. Estava sentado numa cadeira. Fisicamente era quase igual a mim. A única coisa que nos distinguia é que ele era totalmente branco, tendo a roupa alguns detalhes pretos e os seus olhos eram negros. Passava a ideia que toda aquela escuridão estava ali retida e a qualquer momento podia libertar-se e consumir tudo o que a rodeava. Eu, o oceano, o horizonte e aquele rapaz igual a mim. A única certeza que tenho é que ele não estava ali antes. Tentei manter a calma, mas naquele momento nada fazia sentido para mim. Eu estava de pé em cima de um oceano, à minha frente estava um rapaz igual a mim, pintado a preto e branco, que se sentava numa cadeira que estava, assim como eu, em cima do oceano. De seguida, o oceano começou a ondular com alguma violência.
- Quem és tu? Onde estamos? Que sítio é este? Ainda há pouco estava rodeado de milhares de pessoas, num estádio de futebol e agora estou aqui. O que é isto? - questionei violentamente, depois de uns largos minutos de estudo mútuo.
- Tanta hostilidade, River. Sossega. Estás em casa. - respondeu-me com um sorriso sarcástico no rosto, apoiando a cabeça no punho.
- Casa? Em casa? Tu estás doido. Só pode. A minha casa tem um tecto, uma porta. Isto é nada.
- Exacto. Isto que chamas de nada, é a tua casa. É onde tu moras. Se preferires, é onde existes.
- Onde eu existo?
- Mas tenho de explicar tudo? Isto és tu. Olha para baixo. Preocupaste-te tanto em olhar à tua volta e para cima que te esqueceste do que estava em baixo. O que está em baixo também é importante rapaz. Afinal, tu não és um pássaro nem um super-herói, portanto, não consegues voar. Se aqui estás é porque algo te elevou até aqui.
Quando olhei para baixo vi um monte de portas. Recordei-me imediatamente de onde estava. Era o meu interior. Portanto, eu estava dentro de mim próprio. Todas as vezes que aqui vim, as portas estavam fechadas, salvo raras excepções. Naquele dia estavam todas abertas.
- Reconheço o que está submerso. Mas há algo que não compreendo. Habitualmente as portas estavam fechadas, não havia água, nem tu existias.
- Não? Que idiota. - disse-me enquanto se ria, seguindo-se um longo suspiro - Quando as coisas mudam é porque algo as fez mudar. Se algo estranho acontece é porque algo desencadeou esse acontecimento estranho. Percebeste, idiota? Na tua terra a soma de um mais um não é dois? Lá porque tu nunca te deparaste comigo ou com esta água, não significa que ela não existisse. Falas como se já tivesses explorado tudo o que há dentro de ti. Não sejas tão arrogante.
- O que é que aconteceu?
- Tenho de explicar tudo. Vamos por partes. Lembra-te bem que foste tu que perguntaste. O que aconteceu foi o teu pai.
Naquele momento aproximei-me dele e dei-lhe um murro. No momento que o atingi senti que tinha esmurrado o meu reflexo e também o murro se tinha reflectido em mim. Abalado pelo choque levantei-me para perceber que ele continuava sentado na sua cadeira, com o rosto apoiado no punho, impávido e sereno.
- Se continuares assim vais acabar por ser engolido por este oceano e, sinceramente, não me parece que essa ideia te agrade muito rapaz. Portanto, continuemos. Voltemos ao passado por instantes. Recordemos um momento que, aparentemente, desejaste com tanta força esquecer que acabaste mesmo por o esquecer. Quanto nasceste a tua mãe morreu. Morreu para tu poderes viver. Caso não saibas, ela pode escolher. Escolheu-te a ti. Sacrificou-se para que pudesses viver, para teres uma oportunidade de seres feliz. Mas esse acontecimento isolado não te traz mágoa nenhuma. Pelo contrário, até te enche de força. Não é por mim, é por ela, era o que pensavas quando te faltava as forças nas pernas e estavas perto da meta. Sim, pensavas. Cresceste numa casa dividida com o teu pai, apenas os dois. Nunca tiveram uma grande relação, a verdade é essa. Tinham respeito um pelo outro, falavam durante as refeições e pouco mais. Essa não é a relação entre um pai e um filho. É a relação entre dois conhecidos que estão a partilhar o mesmo tecto. Passaste as noites a questionar-te porque é que as coisas eram assim. Quando visitavas Snow percebias que entre ele e o pai dele havia qualquer coisa que não havia em tua casa. Todos os dias te perguntaste o mesmo, até ao dia 23 de Novembro. Como é que te esqueceste, River? Desejaste assim tanto esquecer? Qual era a tua ideia? Fugir? Pensaste que varrendo o lixo para debaixo do tapete que te irias esquecer que ele está lá? Tu até te poderias esquecer, mas ele iria sempre lembrar-se de ti e, um dia, iria surgir. Nesse dia o teu pai deixou-te à porta dos teus avós e disse-te o seguinte: "Não és meu filho. Não te consigo ver como tal. Quando olho para ti apenas vejo um assassino que me tirou a mulher que eu amava dos braços. Nem era para teres nascido sequer, nunca foste desejado. Infelizmente por mais que deseje e que tente não te consigo matar. É como se ela me impedisse. Mesmo assim, não consigo viver com o monstro que tu és. Adeus, River." Foi com estas palavras que o teu pai te deixou à chuva, à porta dos teus avós. Virou-te as costas e nunca mais o viste. Até hoje. Entendes agora de onde veio este oceano? Entendes agora o que ele é? Este oceano é o ódio que lhe guardaste durante todos estes anos. Quanto mais desejaste esquecer, mais o alimentaste e ele cresceu. Achaste que fechando a maioria das tuas emoções as coisas seguiriam calmamente e encontrarias o ponto médio entre a felicidade e a tristeza. Achaste mal. Tal ponto não existe. Isto é tudo o que tu és. O teu verdadeiro ser. São os teus sentimentos que estás a pisar neste momento. Foram eles que te elevaram até aqui.
Fiquei calado a digerir o que me tinha sido dito. Não sabia como reagir. Não sabia o que sentia. Não podia dizer que era mentira, eu sabia que era a verdade.
- E tu? Quem és? - perguntei após concluir a digestão de todas as palavras.
- Eu sou o teu eu interior. Represento-te a ti e tudo o que está dentro de ti.
- Portanto, tu és eu?
- Exacto. Diria mais que tu é que és eu. Sê bem vindo, River.
A sua voz foi-se perdendo no espaço, enquanto este era engolido por uma escuridão profunda. O oceano começou a ondular violentamente acabando por me prender dentro dele.

- Ele está a abrir os olhos! - disse uma voz familiar, bem longe.
- Para onde é que foi toda a água?
- Água? Mas estás parvo ou que? - disse Snow rindo-se - Segundos os médicos tiveste uma quebra de forças ou como se diz. Conversas de médicos, já sabes como é, não foi nada de grave. Estás pronto para outra rapaz!
Olhei à minha volta. Estava no estádio. Presumi que como não tinha sido nada de grave não me tinham levado para o hospital, assistindo-me ali. Provavelmente não tinham era vontade de perder a borla para ver o jogo.
- Snow, vamos embora? - perguntei enquanto me levantava.
- Sim.
No caminho de volta não conseguia pensar noutra coisa se não no que aconteceu. Quanto mais perguntavas fazia, mais respostas encontrava e isso enchia-me de medo. Tinha medo de saber de mais.
- Snow...
- Diz. Não me digas que vais cair para o lado outra vez!
- Não é isso. - disse eu, ignorando a chuva começava a cair sobre mim. - Sabes... até certo ponto da minha vida, vivi no escuro. Mas nessa escuridão, havia pequenas estrelas que adornavam a escuridão. Um dia, o sol nasceu. Bonito e brilhante como nunca. Agora sinto que o sol desapareceu e os meus olhos, acostumados à sua luz, não são mais capazes de observar as pequenas estrelas que adornavam esta escuridão...
- River...



Crow.

2 comentários:

  1. Estou a gostar, meteoro :)
    Quero o resto, ó!

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  2. achaste que fechando a maioria das tuas emoções as coisas seguiriam calmamente e encontrarias o ponto médio entre a felicidade e a tristeza.

    oh :( too bad.
    tá aprovado @

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