terça-feira, 12 de outubro de 2010

Requiem - Segundo Turno

Link do Primeiro Turno.

II

Mia tinha um dom. As pessoas diziam que era divino, diziam que era algo sobrenatural. Ela apenas respondia com um sorriso gentil. Desde pequenina sempre foi boa com o piano. Atingiu o auge das suas capacidades quando ao olhar nos olhos de uma pessoa aprendeu a tocar os sentimentos dela no piano. Para ela o piano não era mais um instrumento musical, mas sim um espelho que reflectia a realidade dos sentimentos daquela pessoa. Foi assim que nos falámos pela primeira vez. Era hora de almoço, Snow estava ocupado a lutar contra uma gripe e eu fiquei sozinho. Não era uma situação agradável, mas também não era desagradável. Muitas das vezes, mesmo acompanhado, eu acabava por ficar sozinho, engolido pelos meus pensamentos, portanto a diferença entre aquela situação e o habitual era apenas a presença física. O mais provável era acabar por me sentar no banco e enquanto comia acabar por me perder novamente dentro de mim, esquecendo se estava sozinho ou acompanhado.
Sentei-me no banco. Ainda estava ligeiramente molhado da chuva dos dias anteriores, mas o cheiro a chuva que emanava fazia-me ignorar esse facto, dando-me um gosto especial estar ali sentado. Rapidamente, enquanto comia, os pensamentos começaram a fluir. Quando isso acontecia, era como se estivesse em coma. Nem um trovão me despertava. Dava por mim num mundo completamente diferente. Num mundo onde toda a gente era feliz. Um mundo utópico, que nunca iria existir. Mesmo tendo noção disso, nada me impedia de me sentar naquele banco de jardim a dar bocados de pães a pombos. Confortava-me ver as pessoas passar naquele jardim com um sorriso genuíno no rosto. Confortava-me ver os animais também felizes. Os gansos flutuavam no lago de forma majestosa, partilhando-o de forma igual e justa com os patos, que andavam em grupo apesar das suas diferenças, ignorando a possível existência de um patinho feio naquele mundo. Se ele existia, eles aceitavam-no como era e respeitavam-no. Tão simples quanto isso. Não era preciso um estudo científico para perceber isso. Um homem com um casaco bege oferecia uma flor à sua amada e esta abraçava-o com um brilho nos olhos. Na telefonia de um grupo de senhores idosos ouvia-se um noticiário sem anunciar um único acidente, uma única guerra. Olhei para o céu e sorri.
- Estou em casa. - pensei para mim.
Fechei os olhos e deixei-me sonhar.
Não deviam ter passado nem dez minutos quando fui acordado por uma agradável melodia e isso reflectiu-se num misto de emoções. Frustração por ter sido arrancado a ferros, pela primeira vez na vida, de casa e uma sensação de calma por aquela bela melodia. Guiado pela curiosidade, como se de um marinheiro atraído pelo canto de uma sereia me tratasse, encaminhei-me para o sítio de onde vinha aquela obra prima. Não hesitei em entrar da sala de onde vinha e sentei-me numa cadeira sem fazer barulho. Era Mia quem tocava. Estava vestida com um vestido azul e uma flor adornava o seu cabelo castanho. Fiquei deliciado. Se pela musica, se por ela, não sei realmente. A verdade é que sentia o coração na palma das mãos, sentia que ele poderia saltar pela boca a qualquer momento. Sentia cada nota musical entrar-me pelos ouvidos, voar por cada milímetro do meu corpo para no fim aterrar no coração.  Nem sei quanto tempo passou, mas penso que fiquei horas a ouvi-la tocar. Quando parou, parecia que tinha saído de um transe. Não conseguia evitar lembrar-me das histórias de marinheiros encantados por sereias, guiando-se para a morte.
- Gostaste? - perguntou-me ela.
- Desculpa, não queria incomodar. - retorqui, surpreendido e algo corado. - Adorei. A sério.
Ela aproximou-se de mim e olhou-me nos olhos. Ambos ficámos com os rostos encarnados, como se cada litro de sangue se tivesse concentrado ali para uma reunião de família. Apesar disso, algo me impedia de virar a cara e sei que a ela também. Como sei, não sei, mas a verdade é que sei. Com o passar do tempo comecei a sentir-me assustado. Sentia que ela estava a percorrer cada uma das divisões do meu interior, sem minha autorização.
- Porque é que é proibido entrar aqui? - perguntou-me.
- Nem eu sei bem. Sei que surgiu dentro de mim há uns anos, mas nunca quis lá entrar. Para dizer a verdade, tenho demasiado medo. As pessoas têm medo do desconhecido, sabes? Quando essa divisão surgiu tive sensações que achei que me podiam dominar completamente e tomar conta de mim. Não quero isso. Gosto bastante da minha racionalidade e de me manter lúcido. Presumo que tenhas visto todas as outras.
- Presumes mal. Não vi nada. São coisas tuas. Se elas estão fechadas, é porque tu queres. Não me cabe a mim lá entrar. Quando tu quiseres entrar, fá-lo-ás. Vais ter de entrar lá um dia de qualquer forma...
- Mais vale acompanhado. - disse eu interrompendo-a, sem saber o que me tinha passado pela cabeça para dizer tal coisa.
Ela respondeu-me com um sorriso, pegando na minha mão. Quando o fez, as fitas com linhas pretas e amarelas que proibiam a entrada, bem como o cadeado e o sinal desapareceram. Desfizeram-se em pó e foram levados pelo vento. Com a mão sobre a minha, abrimos a porta. Do outro lado da porta estava uma árvore com um ovo perto dela.
- Um ovo? - perguntou ela pegando nele.
- Sim, um ovo. Porque é isso que o amor é. Não passa disso. Um simples ovo. Um ovo com uma vida lá dentro. Mas ao contrário do normal, nós não podemos deixar esse ovo eclodir. Se deixarmos o que está dentro dele sair cá para fora, só vai surgir mágoa e tristeza. É isso que ele tem dentro dele. É isso que é o amor. Um ovo carregado de sentimentos negativos. Se alguém partir o ovo, irá surgir uma tempestade. Quando duas pessoas se amam, o objectivo delas é, em conjunto, tratar do ovo.
Ela assentiu com a cabeça, pegou na minha mão e saímos daquela sala.
Quando voltei a abrir os olhos, era eu quem estava a tocar piano. Ela, com as mãos dela, guiava-me gentilmente. Em conjunto, tocávamos uma melodia encantadora. Não era Bach, não era Beethoven, mas era uma descarga dos sentimentos de duas pessoas. E isso é suficiente para formar uma obra prima.

2 comentários:

  1. É isso que é o amor. Um ovo carregado de sentimentos negativos.

    não poderias estar mais errado

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  2. A Mia *____*
    Espero que postes o resto rapidamente, ó!

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